Trinta e um no sentido relevante parece praticamente não ter deixado rasto escrito: os únicos exemplos relativamente antigos que consegui encontrar são no Fado do 31 (1913), no Fado do Ganga (1916) e no Fado do 17 (1936). Isto mostra que a expressão já era usada na segunda década do século XX. Anteriores a esta época, encontrei apenas dois trinta e uns que pudessem estar na origem da expressão: o jogo do trinta e um e a revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891 no Porto.
Inclino-me a pensar que o 31 de Janeiro, se não originou a expressão, tenha pelo menos contribuído para modelar o significado que ela tem hoje. Mas vou apresentar os dados, e cada um tirará as suas conclusões. Em primeiro lugar note-se que esta parece ser uma expressão usada em Portugal mas não no Brasil. Ninguém se pronunciou ainda sobre isto, mas eu não encontro a expressão com este sentido nem no Aulete nem no Michaelis nem no Houaiss.
O Jogo do Trinta e Um
O jogo do trinta e um já era conhecido dos falantes de português no século XIX. Teve direito a verbete no dicionário de Cândido de Figueiredo de 1899 (Houaiss) e é referido em O Ecco, Jornal Critico, Literario, e Politico de 22 de Dezembro de 1835 (gradia original e negritos meus em todas as citações):
Alli se vião baralhos de cartas de todas as castas , honrados com os longos serviços e glorias adquiridas nos jogos do pilha , da bisca, do truque, e trinta e um;
E há uma referência oblíqua em “O Feiticeiro de Coimbra” publicado no Universo Illustrado, 1878:
Regressando a Coimbra, com baixa pela junta militar […] era conhecido pelo Trinta […]
Quando alguem passava perto d'elle, e lhe dizia: olha o Trinta, ou, adeus Trinta, respondia elle logo em seguida:
― Trinta e um; ganhei.
Era o unico cumprimento que dispensava fosse a quem fosse.
No jogo do trinta e um, quem fizer 31 pontos ganha, mas quem os ultrapassar perde. Compreende-se que este jogo tenha dado origem à expressão brasileira bater o trinta e um (Aulete), que significa “morrer”: basta interpretar bater como ultrapassar. Não se compreende tão bem como pudesse originar o significado de “zaragata, confusão”. Este artigo no Ciberdúvidas afirma que a expressão portuguesa tem origem no jogo, mas o único argumento que apresentam, que «os jogos, por vezes, são ruidosos, conflituosos e podem dar lugar a embrulhadas, zaragatas e desordens», não me parece muito convincente. Uma possibilidade seria a expressão ter origem no jogo do trinta, em que se perde ao ultrapassar trinta pontos. Este jogo é referido no Diccionario da Lingua Portugeza de António de Morais da Silva de 1813 e no Thesouro da Lingua Portugueza do Frei Domingos Vieira de 1874 (Vol. 5, p. 822), que acrescenta que no seu tempo é trinta e um em vez de trinta:
Jogo de cartas em que ganha ou empata quem faz trinta, ou fica em ponto mais proximo a elles que o contrario: hoje em logar de trinta é trinta e um.
O 31 de Janeiro e Os Fados
O 31 de Janeiro de 1891 foi uma data marcante no final do século XIX e princípio do século XX, pois nesse dia estalou no Porto uma revolta de militares do exército em favor da abolição da monarquia e implantação da república. A revolta foi suprimida, tendo resultado em doze mortos e quarenta feridos. Com a implantação da república em 1910, os revoltosos do 31 de Janeiro foram considerados heróis, e muitas ruas ganharam o nome 31 de Janeiro, incluindo a antiga Rua de Santo António no Porto, que fora o palco principal da revolta.
Não é implausível que trinta e um adquirisse entretanto o significado de “zaragata e pancadaria”, que é o significado com que a expressão é usada no Fado do 31, Fado do Ganga, e Fado do 17.
O Fado do 31 foi cantado pela primeira vez na revista O 31 em Lisboa em 1913. O fado narra três cenas de zaragata e pancadaria, e tem como refrão «tudo bate em Portugal, o fado do trinta e um». Note-se que um dos significados de fado (Aulete 3) é “destino, sina, sorte”. Podem ouvir o Fado do 31 aqui: e têm a letra aqui.
O Fado do Ganga foi cantado pela primeira vez na revista O Novo Mundoem 1916, quando se discutia a entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial. Houve um versão gravada mais tarde, que podem ouvir aqui, mas que omite a parte que nos interessa, que eu achei aqui:
Na guerra dos alimões / co’as nações / tem um exemplo de estalo.
Pois, no fim d’esta embrulhada, / o que der mais traulitada / é que ha de cantar de galo.
E quando chegar o dia / em que a gente fôr p’ra guerra… / (Ai! Ó! Sempre estás co’uma pressa!)
Então, adeus ó Turquia. / A Alimanha, mais a Austria / Lá vão de ventas á terra.
Vae-se a Verdum e pum! / Arma-se um grande trinta e um,
Vae-se a Berlim e pim! / Ha banzanada até ao fim.
O Fado do 17´, estreado na revista Arre Burro em 1936, é talvez o mais interessante. É precedido de uma declamação em que o agente policial nº 17 recorda os tempos de pancadaria da primeira república, antes do golpe de 28 de Maio de 1926, que iniciou o regime fascista. Na canção o polícia diz que esse tempo é dominado pelo fado do 31 (com várias referências claras ao fado de 1913), o qual teria morrido com a chegada do 28 (de Maio). Podem ouvir declamação e fado aqui (minha transcrição; tenha dúvidas em relação a algumas palavras):
[Declamação:]
A polícia de outros tempos gravou na história da solha [folha?] as datas mais mimoráveis da chinfalhada e da trolha. Era a época das peras. Eram peras nos comícios a falar ao desafio. Eram peras à saída. Eram peras no Rossio. Que peras que a gente dava no lombo daquelas feras. Que peras que eu arreava. Isso é que eram tempos... e peras. Ai! meus filhos, que sodades. E em dias de grande gala, a gente todos de azul, tal e qual os ginirais de agulheta [?] e cordões; c’as luvas brancas calçadas, para não deixarmos marcadas as impressões digitais nas trombas dos matulões. E aquilo inté dava gosto. C’as fardas muito bem postas, ver a gente perfilada. O sol a bater na espada; a espada a bater nas costas; e as costas do cidadão a bater que nem pum… nas pedrinhas da calçada. Ai! meus filhos, que sodades
[Canção:]
O trinta e um é o fado / eterno e cantado / ai! como nenhum.
Desde a Abissínia ao Japão / aquilo hoje é pão, / só há trinta e um
Chegou à Rússia e à China / em Espanha domina / e chega a Irún
Ai! meus filhos em Baiona / ai! que atafona, [?] / que trinta e um
[Refrão x 2]
Vai-se a Pequim, / trinta e um, há chinfrim, / vai-se a Ceilão / trinta e um, revolução,
Vai-se a Nanquim, / trinta e um, há motim, / vai-se a Aragão, trinta e um, cachação.
O trinta e um / hoje em dia é comum, / é tudo a dar, a cascar, a arrear!
Ai, Portugal, é que é só conversar, / falazar, falazar…
Em Portugal este fado / ergueu no passado / um hino ao zum-zum
À porta da Brasileira / a tropa guerreira / era o trinta e um
Depois veio o vinte e oito / e foi-se o biscoito / a bomba e o pum
Ficou tudo sossegado / morreu o fado / do trinta e um
[Refrão x 2]
Como o vinte e oito da canção se refere ao 28 de Maio de 1926, é tentador pensar que também trinta e um se refere a uma data, e o candidato óbvio é o 31 de Janeiro de 1891. Há ainda a intrigante expressão 31 da Armada. Atualmente dá o nome a um blogue monárquico. No blogue cão com pulgas diz-se que 31 da Armada designa uma tentativa de golpe militar contra a Primeira República a bordo do cruzador Vasco da Gama a 19 de Julho de 1925, considerado como um ensaio do 28 de Maio. (O blogue também diz esta intentona está na origem da expressão trinta e um, o que não faz sentido, uma vez que a expressão já existia antes.) Ora como a intentona não tem nenhuma relação direta com o número 31, uma justificação para o nome seria que o trinta e um original foi o do Exército em 1891, e este seria o “trinta e um” da Armada. Ambas foram tentativas falhadas de mudar o regime da altura, mas em ambos os casos o regime acabou por mudar, 19 anos depois no caso do exército, um ano apenas no no caso da armada.
Fechamento do Círculo?
É possível que o jogo e o 31 de Janeiro tenham ambos contribuído para a formação da expressão. Por exemplo, no jogo do trinta e um, quando um jogador ultrapassa os 31 pontos e perde, diz-se que rebenta (Priberam). Não é difícil imaginar o pessoal após a supressão da revolta do 31 de Janeiro começar a dizer que os revoltosos tinham rebentado o trinta e um. O Fado do 31 (excluindo o refrão) termina precisamente com estas palavras:
E depois está tudo torto
E rebenta o trinta e um