Quanto à origem de pagar o pato, a resposta curta é: não se sabe ao certo; a única certeza é que a expressão já era usada por volta de 1550 em Portugal e em Espanha—pagar el pato. Pagar el pato de la boda, que o Ciberdúvidas (2014) parece tomar como a expressão original, é uma variante tardia. As expressões portuguesa e castelhana hão de ter a mesma origem, pelo que vou usar material de ambas as línguas.
Primeiros exemplos conhecidos e significado
Em Portugal o mais antigo exemplo conhecido é de Francisco Sá de Miranda (1481-1558), numa carta em verso muito crítica do novo Portugal (texto integral aqui); vindo ele a falar das festas da alta sociedade, com os seus luxos orientais , “que preço nam tem igual”, diz:
Onde se ha de lançar tanto,
Aquillo he pagar o pato.
Os primeiros exemplos conhecidos são importantes no estudo da origem duma expressão, porque nós queremos ter uma ideia de quando é ela aparece, e além disso poderão dar-nos dicas acerca das circunstâncias que a originaram. Infelizmente, neste caso o sentido exato da expressão não é claro. Fica-se com a ideia que alguém tem de pagar aquelas extravagâncias, mas não é sequer óbvio que haja alguém a pagar pelo que não fez.
Os primeiros exemplos em castelhano são igualmente obscuros. Pagar el pato vem já neste Libro de Refranes de 1549; sem qualquer explicação, mas sugerindo que a expressão era já nesta altura bem conhecida em Espanha. Temos a expressão também na Farsa del molinero (cerca de 1525-47) e em Las coplas del vil (antes de 1552). Este último eu li com atenção com a ajuda do dicionário: Uma donzela tenta seduzir um pastor, para que venha ter com ela, e ele vai-lhe dando negas. Às tantas ela diz-lhe (tradução minha), “comerás, pois te convido, e de mim te faço o prato”, e ele responde, “Não queria pagar o pato”.
Também aqui não se vislumbra o sentido atual da expressão (e quem quiser que se entenda com a Farsa del molinero). Mas o sentido já fica claro em séculos mais recentes, até porque entretanto aparecem os dicionários. Neste Diccionario de la lengua castellana de 1737, o significado já é o de pagar por coisa que outros fizeram, e é o que encontramos nos dicionários brasileiros e vários portugueses de hoje (Houaiss (2002), Aulete, Michaelis, Infopédia, Priberam).
Nos dicionários antigos de português, o significado é um nadinha mais abrangente, que é o que eu conhecia: pagar pelos que os outros fizeram ou pagar só eu por algo que eu e outros fizemos em conjunto (conta num restaurante, por exemplo); vejam o Moraes Silva de 1789 ou esta Collecção de proverbios publicada no Rio de Janeiro em 1848. Na verdade, a diferença é ligeira e variações destas são naturais. O significado duma expressão existe na cabeça de quem a diz e quem a ouve, e as circunstâncias a propósito de que são usadas podem variar no tempo e no espaço.
Conjeturas sobre a origem
Jogos antigos. O historiador espanhol Aureliano Fernandez-Guerra sugeriu na Biblioteca de autores españoles de 1859 que o dizer foi “tomado acaso de algun juego ó diversion”. Variantes elaboradas desta hipótese aparecem em português em dois sites, este Dicionário Popular e este Expressões Populares (onde a hipótese é transformada em certeza), que o Ciberdúvidas achou por bem citar. Estas variantes descrevem com algum pormenor um jogo que se praticaria antigamente em Portugal, e que envolve um pato; quem perdesse tinha de pagar literalmente o pato. Infelizmente, à semelhança de muitas explicações de origens de expressões publicadas por aí, nenhum dos sites apresenta qualquer evidência que esse jogo alguma vez tivesse existido.
Conexão judaica. Casiodoro de Reina na “Amoestacion al lector” da sua
tradução espanhola da Biblia (1573) comenta que os judeus diziam que tinham a Tora e o Pacto (com Deus), e que os espanhóis, não compreendendo estas palavras, zombavam dizendo que os judeus adoravam uma tora (’toura, vaca’) pintada na sinagoga e que “del Pacto sacaron por refran contra ellos [os judeus], Aqui pagareys el pato”. Deste “sacaron” (’sacaram, tiraram’), não sei se ele está a dizer que a locução nasceu aqui ou se simplesmente os espanhóis usaram ou adaptaram uma locução já existente, mas El Refranero General Español de 1877 não duvida que esta é “a verdadeira origem desta locução”.
Anedota medieval. O filólogo João Ribeiro (Frases Feitas, 1908 (edição de 2009)) não vê mérito nesta hipótese da conexão judaica e diz que, “ao que presumimos”, a origem está numa anedota incluída por Poggio Bracciolini (1380-1459) nas suas Facetiae (’facécias’). Encontrei uma tradução em inglês das Facetiae (procurem “Of a Countryman Who Had a Goose for Sale”). Um rapagão tinha um ganso para vender. Uma mulher pergunta quanto custa, e ele responde que era só um “coito”. Vão para a casa dela, e dois coitos depois ele alega que o ganso ainda não está pago: o primeiro coito não valeu porque a mulher estava por cima; o segundo, com ele por cima, foi só para ficarem quites. Nisto chega o marido, e ela diz que lhe queria preparar um manjar, que o rapaz acordara vender o ganso por 20 soldos e agora exigia 22. O marido diz que não iam perder o jantar por uma ninharia, e pagou o ganso ao rapaz.