6

Por exemplo, na seguinte frase:

Aquele dia na sua casa foi tão bom e nem percebi, fiquei foi preocupando-me com o dia seguinte.

O verbo ser (em negrito) deixa subtendido que o locutor não deveria estar se preocupando com o dia seguinte, mas fazendo alguma outra coisa (no caso, aproveitando o momento bom), mas ao invés, preferiu se preocupar. Outro exemplo claro é quando algo fora do comum está acontecendo, fazendo juntar uma multidão para assistir (como uma briga de rua, por exemplo) e alguém diz: eu vou é para casa.

Fica claro que o que essa pessoa quer dizer é: eu vou para casa ao invés de ficar assistindo essa confusão. O verbo ser deixa implícita essa idéia.

Não sei se esse fenômeno é algo somente da região onde eu moro, mas acredito que é próprio da linguagem coloquial.

Qual a origem desse uso do verbo ser e qual é exatamente o valor sintático ou semântico dele nesses casos?

3
  • 1
    Não deve ser coisa regional: também se usa muito aqui em Portugal. Vou é para casa; quero é que não me chateiem; ele é é parvo; não vi a Maria, vi foi a Ana. Às vezes pode-se acrescentar um mas: vou é para casa = vou mas é para casa.
    – Jacinto
    Commented Apr 9, 2022 at 10:19
  • 2
    Isto é pura especulação, mas este uso pode ter origem na degradação dum sujeito oracional: (o que) ele é é parvo; (o que) eu quero é papas e descanso; (quem) eu vi foi a Ana.
    – Jacinto
    Commented Apr 9, 2022 at 14:11
  • 1
    fiquei ou foi preocupando-me??
    – Lambie
    Commented Apr 9, 2022 at 15:27

1 Answer 1

6

Essas estruturas chamam-se clivadas de SER, e alguns linguistas sugerem “que elas são [pseudoclivadas] reduzidas, resultado do apagamento de certos elementos” (Anderléia Longhin¹, 1999, p. 108), como eu ilustro com estes exemplos da Gramática do Português da Gulbenkian² (pp. 2620, 2656 e 2652):

                 Pseudoclivada                                  →           Clivada de SER

quem eu vi sair foi o João                                 →   eu vi sair foi o João

o que o meu pai me ofereceu foi este relógio  →   o meu pai ofereceu-me foi este relógio

do que eu não gosto é deste tipo de                →   eu não gosto é deste tipo de comentários
                                                comentários

Isto faz sentido também diacronicamente: as pseudoclivadas já vêm do século XIII, enquanto as clivadas SER só encontrei a partir de 1890 (Longhin só as encontrou a partir de 1925, mas em 1999 ela não tinha o Google Books):

E o que quero é dizer loor da Virgem (loor = louvor)
Cantigas de Santa Maria, século XIII

Queremos é saber a opinião da commissão
Annaes do Congresso Constituinte do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1891

― Eu quero lá ver isso! respondeu o morgado, cheio de espanto pela extranha lembrança do advogado, você está doido!... Eu quero é que você metta o codigo no… no lume.
João Salgado, Os Silverios, Recife, 1895

A Gramática do Português (p. 2653) observa no entanto que as pseudoclivadas e as clivadas SER diferem nalgumas propriedades sintáticas. Por exemplo, as clivadas SER podem focalizar componentes dum sintagma nominal, enquanto as pseudoclivadas não:

[Gramatical:] Quero comprar um livro é do Mia Couto

[Agramatical:] *De quem quero comprar um livro é do Mia Couto

As pseudoclivadas têm mais limitações na clivagem de certas palavras negativas. Por exemplo, em resposta a não veio muita gente:

[Gramatical:] Não veio foi ninguém

[Agramatical:] *Quem não veio foi ninguém

Nas pseudoclivadas, ao contrário das clivadas de SER, o verbo ser pode ocorrer integrado numa perífrase verbal:

[Agramatical:] *O Pedro perdeu pode ter sido o passaporte

[Gramatical:] O que o Pedro perdeu pode ter sido o passaporte

Longhin (p. 186) nota também que as clivadas de SER, ao contrário das pseudoclivadas, têm limitações na clivagem do sujeito. Funcionam com verbos intransitivos (desapareceram foi as joias; amanhã chega é o Pedro), mas não quando há complementos:

[Duvidoso:] ??Viu o João sair foi a Ana

[Gramatical:] Quem viu o João sair foi a Ana

Do ponto de vista semântico e pragmático, a pergunta já avança a resposta: a função do verbo ser é pôr em foco o elemento seguinte. Retomando o meu primeiro exemplo:

Eu vi sair foi o João

O foi põe o João em foco, negando possíveis alternativas: vi sair o João, não vi sair mais ninguém. A Gramática do Português (p. 1628) chama a isto foco contrastivo:

Do ponto de vista semântico e pragmático, o foco contrastivo introduz um valor de oposição relativamente a uma asserção, a uma pressuposição ou a uma expectativa, explícita ou implicitamente presentes no domínio discursivo. A propriedade central de um foco contrativo é a de adicionar ao valor denotativo básico da frase a expressão da atitude (discordante) relativamente ao que sabe ou supõe serem as expectativas ou convicções do ouvinte.

Referências:
¹ Longhin, Sanderléia Roberta, 1999. As construções clivadas: uma abordagem diacrônica, Dissertação, Universidade Estadial de Campinas.
² Gramática do Português da Gulbênkian, Vol. III, Lisboa, 2021.

4
  • Óima resposta Jacinto! Eu não sabia que «De quem quero comprar um livro é do Mia Couto» e «Quem não veio foi ninguém». De «O Pedro perdeu pode ter sido o passaporte» e «Viu o João sair foi a Ana», na minha experiência, elas acontecem na fala quando se cortam palavras.
    – Schilive
    Commented Apr 12, 2022 at 1:28
  • @Schilive, não sabias que... o quê? O que eu digo, e a Gramática do Português, é que essas construções são agramaticais. Pois, também acho que se ouvem coisas do tipo dos outros dois exemplos: às vezes as pessoas pensam uma coisa, o Pedro perdeu foi o passaporte, começam a dizer mas a meio caminho descobrem que não têm a certeza e dizem pode ter sido, e sai aquela coisa. Mas se pensassem poder ter sido de início provavelmente começariam com O que o Pedro perdeu...
    – Jacinto
    Commented Apr 12, 2022 at 1:46
  • Adoro quando eu faço uma pergunta e o cara responde logo com um textão, já sei que vou aprender algo de fato; Jacinto nunca decepciona. Valeu cara, tu é brabo! Commented Apr 13, 2022 at 2:32
  • @єυlєтяicσ, obrigado pá, até me começa melhor o dia!
    – Jacinto
    Commented Apr 13, 2022 at 9:17

Your Answer

By clicking “Post Your Answer”, you agree to our terms of service and acknowledge you have read our privacy policy.

Not the answer you're looking for? Browse other questions tagged or ask your own question.