Pesquisei na Hemeroteca Digital Brasileira, que tem o texto integral de centenas de periódicos brasileiros dos últimos dois séculos, e variadas expressões desse tipo aparecem a partir de 1949. Não encontrei nenhuma anterior, mas naturalmente já deviam existir na língua falada. Mostro abaixo as que encontrei entre 1949 e 1959, indicando os anos em que ocorrem. Clica no ano para ir à folha do jornal (a expressão está marcada a verde):
Nascer ou andar virado para a lua — resultados da busca na Hemeroteca Digital Brasileira
Nasceu (sem indicar parte do corpo) virado para a lua . . . 1949 52 53 54 56 56 57
Anda com o fígado virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . . . 1954 56 56
Anda com o nariz virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1954
Anda com o joelho virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . . . 1955 56
Viu a luz do sol com o rosto virado para a lua . . . . . . . . . . 1955
Nasceu com o joelho virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . 1956 56 57
Nasceu com o fígado virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . 1956 56
Nasceu de intestino virado para a lua . . . . . . . . . . . . . . . . 1956
Veio de Pernambuco com o fígado virado para a lua . . . . 1956
Nasceu com a bundinha virado para a lua . . . . . . . . . . . . . 1959
Estes são os únicos dados concretos que eu consegui encontrar sobre a questão, e agora podemos ver o que é que eles nos dizem acerca da origem da expressão.
Conjeturas sobre a origem da expressão
Encontram-se na net duas explicações, descritas em pormenor nas outras respostas. Uma diz que a expressão nasce de uma descrição do parto dos indiozinhos na famosa carta de Pero Vaz de Caminha aquando da chegada dos portugueses ao Brasil. Esta é fácil: a carta está aqui, é mesmo muito interessante, mas não fala de partos nem de luas.
Segundo a outra explicação, o nascimento de rabo é complicado, e o bebé que sobrevivesse a um parto desses era considerado sortudo. Esta tese parece-me muito duvidosa pelas seguintes razões:
- Nenhum site em que encontrei esta tese explica como que sabe que foi assim que a expressão surgiu.
- As 21 ocorrências mais antigas que encontrei destas expressões (ver acima) não fazem qualquer referência ao traseiro, e um terço delas não faz referência a nascimento. Os jornais poderiam sentir alguma relutância em publicar a palavra cu ou rabo, mas isso não explica não usarem uma palavra mais aceitável, como bundinha ou traseiro.
- Não se entende o papel da lua nesta explicação. Presumivelmente, quem sobrevivesse a um nascimento de rabo seria sortudo independentemente de estar ou não virado para a lua. Poderia muito bem a lua estar abaixo da linha do horizonte, ou a parturiente virada para outro lado. Mas a lua, e não o traseiro ou o nascimento, é que é a constante nestas expressões (procurei expressões do tipo nascer de rabo, sem referência à lua, e não encontrei nada relacionado com sorte).
- Se sobreviver a circunstâncias difíceis é indicador de sorte, porque é que não se diz dos sortudos, que eles nasceram numa casa a arder, ou durante a seca, ou durante a cheia ou guerra, ou que já foram atingidos por um raio?
Por tudo isto me parece que esta explicação não passa de um conjetura apresentada como verdade confirmada.
A minha conjetura
O que se segue é também uma conjetura, mas tem menos problemas que as conjeturas acima. Parece-me possível que a expressão tenha nascido duma ideia qualquer, levada a sério ou não, acerca da influência da lua, e que cu ou rabo tenha sido acrescentado só para dar mais impacto. Pelo menos em Portugal há exemplos deste uso de cu, só para aumentar o impacto: mexe-me esse cu significa ’despacha-te, anda mais depressa’; encher o cu a gulosos, ’pagar a alguém, contribuir para enriquecer alguém (que não merece)’; não contes ao Manel, que ele vai logo meter tudo no cu de fulano, ’o Manel vai contar tudo a fulano’ (eu só me lembro de ouvir esta a uma pessoa, mas vem no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).
Dito isto, nascer ou andar com o fígado ou intestino virado para lua, como se encontra nalguns do exemplos dos anos 50, é uma ideia estranha. Talvez fosse código para cu. É possível que já se dissesse cu virado para a lua, mas que os jornais não quisessem publicar cu. Se fosse a posição da pessoa que interessasse, poderiam usar bundinha ou equivalente polido. Mas se o que interessasse fosse o impacto e brejeirice da palavra cu, o jornalista poderia preferir usar algo disparatado, como fígado, de modo a levar o leitor a entender cu virado para a lua.
Se isto faz sentido—se fígado era código para a palavra cu—orangotangos e orangovalsas seria código para quê?
Só não fraturaram as canelas do crioulo porque o crioulo, Pelé, nasceu com todos os orangotangos e os arangovalsas, todinhos, virados para a lua. E cheia. E bochechuda.
José Amádio, O Cruzeiro, 17 de julho de 1974, p. 3.
Será que também dá sorte nascer com os tintins virados para a lua?