Essa construção está correta mas é arcaizante. O que te falta a ti, e a mim, e provavelmente à maioria de nós, é exposição a ela. Mas foi muito comum no passado e mantém-se ainda hoje, ainda que seja rara. Mas se o Machado de Assis, Alencar, Camilo e Júlio Diniz escreviam assim, não podemos dizer que esteja errado. Vejamos o que já dizia há quase um século Said Ali na Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 1931 (2ª parte, p. 127, grafia original):
O port[uguês] hod[ierno], construindo sentença causal de como, prefere o imperfeito do indicativo ao imperfeito do conjuntivo para os actos passados, e serve-se do indicativo se tem de pôr o verbo no presente. Antigamente era mais frequente o emprego do imp. do conj. e em alguns autores occorrem tambem exemplos do presente do conjuntivo:
Como a tarde fosse serena e as arvores com gracioso ar se meneassem… lhe trouve aa memoria aquelle gracioso tempo (Mor. Palm. 1, 4)—Como o gigante viesse folgado e fosse dos mais forte do mundo… pelejava tam animosamente (ib. 1, 60)—E como o amor de Deos seja alto e vença todas as cousas, fica o bom subdito alto e vencedor obedecendo a hum baixo e vencido (H. Pinto 1, 129)—Como amizade seja hũa das boas cousas que ha no mundo, e seja fundada em virtude e razão natural, e no mesmo Deos, está claro que não ha entre perversos e depravados inimigos da virtude (ib. 2, 289)—Como não achasse mais que folhas [na fiqueira], amaldiçoou-a (Vieira, Serm. 5, 540).
Os autores citados por Said Ali são Francisco Moraes e Frei Heitor Pinto do século XVI e o Padre António Vieria do século XVII, mas o Corpus do Português mostra que a construção era ainda comum na literatura do século XIX e até mesmo do princípio do XX; e ainda se encontra ocasionalmente no final do século XX. Eis alguns exemplos (ênfase minha):
E, como soubesse que a familia real estava em Cintra, conjecturou que os deputados, e particularmente Calisto, deviam estar em Cintra para de lá governarem a Monarchia.
(Camilo de Castelo Branco, A Queda d’um Anjo, 1866, p. 209.)
Já estou boa. E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que não era preciso, estava boa.
(Machado de Assis, Dom Casmurro, 1899.)
Estendeu-me a flauta. ― Toma. E como tivesse ficado indeciso, disse-me que era para mim (Alves Redol, Fanga, 1943.)
Deu-lhe um riso áspero—àquela moça novidadeira, que, muito satisfeita, virava para o canto da parede e logo depois caía no mais doce dos sonos. Como estivesse vestida, Basília saiu sem demora do quarto. (Dinah Silveira de Queiroz, A Muralha, 1954.)
Era sudanês e vivia em Cartum, mas, como não encontrasse emprego na capital, decidiu partir para o Darfur. (Paulo Moura, “Esquecimento”, Público, 9-12-2007.)
O tocador de flauta, como tivesse terminado o trabalho ajustado, foi-se afastando, fleumático, com o seu estojo debaixo do braço.
(Mário de Carvalho, Um deus passeando pela brisa da tarde, 1994.)
Atualmente o conjuntivo tem mais alguns outros usos comuns além dos indicados na pergunta:
Não vais achar nada bem que eu pague a conta em raiva.
E pudesse eu pagar de outra forma! E pudesse eu pagar de outra forma!
(Ornatos Violeta, Ouvi Dizer, 1999.)
Bateste à porta e ninguém atendeu? Talvez estivessem nas traseiras.
Lamento, mas já não há bolo. Olha, chegasses mais cedo.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro génio de vinganças (Luís de Camões)
Trabalhava todos os dias, chovesse ou fizesse sol.
Nestes exemplos, tal como no uso em orações subordinadas exposto na pergunta, o subjuntivo exprime potencialidade, hipótese, incerteza, possibilidade, irrealidade ou indeterminação, e é isso que nós normalmente esperamos. No uso em questão, nas orações causais de como―“como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe”…―exprime um facto, e é isso que no causa perplexidade por falta de familiaridade. Note-se no entanto que esta associação do conjuntivo ao potencial, incerto, etc. é apenas uma tendência. Veja-se o que diz a Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra (Lisboa, 2014, p. 583):
A distinção entre o MODOS INDICATIVO e CONJUNTIVO é complexa. Não existe correspondência entre os dois modos e distinções modais, um vez que a cada MODO se pode associar mais do que uma MODALIDADE.[...] A análise do CONJUNTIVO não tem sido consensual, considerando alguns linguistas que as duas formas surgem apenas por exigência de construção sintática.
E o que se passa é que existe alguma tolerância nestas “exigências de construção sintática”, e as “preferências”, como lhes chama Said Ali, têm variado. Temos também um exemplo oposto: no passado usou-se o indicativo após talvez e desde que, onde presentemente usamos o conjuntivo: talvez abuso versus talvez abuse; desde que não me aborrece versus desde que não me aborreça (vê esta pergunta). Exemplo similar noutra área: era comum no passado dizer-se já lhe não parecia em vez de já não lhe parecia (vê esta pergunta).