A minha interpretação literal do provérbio sempre foi como ilustro abaixo:
A candeia que vai à frente alumia duas vezes porque alumia o caminho à pessoa que a leva e à pessoa que vai atrás. Se fosse a pessoa de trás que levasse a candeia, já não iluminaria o caminho à da frente.
É claro que usado literalmente o provérbio não teria interesse nenhum — duas pessoas caminhando na escuridão jamais se lembrariam de ser a de trás a levar a luz. Pelo que objetivo do provérbio deve ter sido, não ser aplicado literalmente, mas ilustrar um ensinamento para aplicar noutras situações.
Aqui em Portugal, ouço o provérbio só muito raramente e também nunca compreendi claramente qual seria esse ensinamento. Então fui em busca das primeiras ocorrências escritas (reproduzo algumas abaixo), e durante o século XIX o provérbio parece ser usado para justificar agir cedo ou mesmo antecipadamente. Parece haver uma transposição do sentido literal espacial para um sentido temporal: tal como a candeia é mais proveitosa se for adiantada no espaço, certas ações são mais proveitosas se forem adiantadas no tempo. Muitas vezes a ideia é fazer a coisa agora, que já fica feita e mais tarde pode não voltar a haver oportunidade; ou fazer a pessoa interessada a coisa logo que possa, em vez de esperar que outro a faça mais tarde.
Neste exemplo de 1840, o mais antigo que encontrei, Margarida aconselha Emília a precaver-se (ou vingar-se) mandando matar certo tipo, em vez de esperar que Deus a vingue. Emília escandaliza-se (grafia original; negrito meu em todas as citações):
Em[ília]. Vai, deixa-me: Deos ha de compadecer-se da minha infelicidade, elle me vingará.
Marg[arida]. Quem espera çapatos de defuncto, toda a vida anda descalço.
Em. Que? duvídas da Providencia de Deos?
Marg. Pelo contrário; mas candea que vai adiante alumia duas vezes — fia-te na virgem, e não corras, e verás a sova que mamas.
Barbeiro dos Pobres, O sino das duas horas, comedia original em cinco actos, Porto, 1840
Neste exemplo de 1842, o provérbio vem na sequência de principiis obsta, ’obsta no princípio’, ou seja, “atacar o mal logo no princípio” (Priberam). Um tipo apanhou chuva, e Michaela oferece-lhe sapatos secos:
— Sem incommodo, tia Michaela, sem incommodo; eu não trago os pés molhados.
— Não importa, Sr. mestre, não importa: eu bem sei o que faço. Livra-te dos ares, livrar-te-ei dos males; e, segundo diz o dictado, mais vêem quatro olhos que dous. Principiis obsta, dizia meu marido de gloriosa memoria. Mestre, candeia que vai a diante alumia duas vezes.
“Variedades. Uma hora com a tia Michaela”, Sentinella da Mocarchia, Rio de Janeiro, 5-3-1842
Nestoutro exemplo, Um periódico noticia a morte de Alexandre Magno de Castilho, e este responde-lhes assegurando que ainda está vivo e mostrando aprovação por orações anteciparas pela sua alma:
«Que isso não obste a que os bons christãos se empenhem com Deus pela boa sorte da minha alma, pois candeia que vae adiante alumia duas vezes.
Archivo Universal, 1860, Lisboa
Aparentemente os Castilhos gostavam deste provérbio. Temos aqui o irmão do anterior, num uso claramente sarcástico:
[…] V. S., que, mesmo sem conhecer a argumentação contraria, já vai achando materia para antecipadamente a verberar. Faz bem: Candeia que vai adiante, alumia duas vezes.
José Feliciano de Castilho, “Litteratura. Cartas” [7ª a Ramalho Ortigão, de 28-12-1862] Constitucional, Rio de Janeiro, 11-1-1863