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Estou lendo atualmente o clássico Dom Quixote e me deparei com uma construção pronominal que estou tendo dificuldade para entender. A passagem em questão é a seguinte:

"Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo."

Minha dúvida está relacionada à construção "encheu-se-lhe" e "assentou-se-lhe". O uso duplo de pronomes aqui me confunde. O que exatamente essa construção significa neste contexto ? Também gostaria de saber o nome específico dessa construção pois não tenho certeza se chama "ênclise dupla".

Agradeço antecipadamente pela ajuda e pela clarificação desta questão.

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  • a fantasia se encheu para ele de a, b e c. E: na imaginácão dele se assentou etc.
    – Lambie
    Sep 5 at 16:12

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Vamos por partes. Primeiro o se:

A fantasia encheu-se de tudo...

Neste caso, estamos perante um se anticausativo. Assim, temos:

A chuva encheu o poço de água. (versão causativa; sujeito a chuva toma o papel de Fonte)

O poço encheu-se de água. (versão anticausativa; sujeito tem o papel de Tema, que é o objeto direto na versão causativa)

Verbos deste género chamam-se verbos de alternância. Na verdade, com encher, o se não é obrigatório. Em português brasileiro, ainda menos é, embora dependa da região. Em português europeu, o poço encheu de água parece-me uma opção duvidosa, mas o poço encheu é melhor do que o poço encheu-se. No texto que citaste, temos uma versão com objeto oblíquo, por isso, ao meu ouvido, a versão com -se é melhor.

Em relação a assentou-se, temos:

Assentou-se na imaginação ser verdade que...

onde ser verdade que é o sujeito. Aqui, a frase já me soa estranha. Não é que assentar-se não exista, mas assentar-se é normalmente usado quando significa sentar-se. Diria:

O depósito assentou no fundo da garrafa.

mas:

Eles assentaram-se à mesa.

Mas enfim, a ideia é a mesma. Temos uma construção transitiva de assentar (ele assentou o filho à mesa) e uma construção anticausativa (ele assentou-se à mesa).

Quanto ao lhe, é o chamado dativo de posse (como em dói-me a cabeça):

Encheu-se-lhe a fantasia de coisas = A fantasia dele encheu-se de coisas

Em português europeu, é possível redobrar o clítico:

Encheu-se-lhe a sua fantasia de coisas

Acontece o mesmo com assentar e imaginação.

Quanto ao facto de haver dois clíticos, a combinação se + dativo é permitida (ao contrário da combinação se + acusativo, que só é permitida nalguns dialetos). O pronome se tem de ocorrer antes do dativo lhe. A mesma ordem ocorreria com próclise:

Não se lhe encheu a imaginação.

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  • Esse uso dobrado também acontece em lei brasileira. Por exemplo, no ECA no Art.3º há a frase "assegurando-se-lhes".
    – Schilive
    Nov 11 at 17:55
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Essa construção na verdade é um castelhanismo; a versão original traz:

Llenósele la fantasía de todo aquello que leía (...) tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación...

Naquele idioma, é uma construção corriqueira para substituir o pronome possessivo; de modo que os espanhois não dizem lastimó [machucou] su mano, mas sim se lastimó la mano. Então a sequência original, se traduzida num português mais castiço porém mas informal, diria:

A fantasia dele se encheu de tudo que achava (...) disparates impossíveis; e a ideia se assentou na sua imaginação de tal modo de tudo aquilo ser verdade...

Então, sob certo aspecto, o se no texto faz a vez de pronome possessivo.

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