10

Actualmente, usa-se, em todo o Brasil, a palavra fato com o mesmo significado de facto, presente até hoje em Portugal e Angola, por exemplo.

A partir de que momento da história do Brasil essa mudança passou a vigorar? A mudança fonética (a remoção da consoante "c") veio com o passar do tempo após algum acordo ortográfico, ou já existia e foi a origem da mudança?

2 Answers 2

11

A grafia facto passou oficialmente a fato no Brasil com o Formulário Ortográfico de 1943, que veio alterar a grafia de centenas (talvez milhares) de palavras, tal como já tinha acontecido em Portugal com a Reforma Ortográfica de 1911.

O c foi eliminado da palavra facto no Brasil porque já não era pronunciado. Portugal e nos PALOPs é pronunciado e por isso manteve-se. As reformas ortográficas vieram aproximar a grafia à fala, nomeadamente, suprimindo consoantes mudas (mas não consoantes realmente pronunciadas) e introduzindo a maioria dos acentos que usamos hoje. Portugal antes de 1911 e o Brasil antes de 1943 não tinham grafias oficiais, mas a maioria do pessoal escrevia assim:

Aquelle auctor vae ha varios annos áquella matta, onde tem escripto á sombra d’uma arvore sobre sciencia, machinas, cyclos astronomicos e outros assumptos.

Estes c em auctor e p em escripto e assumto, como em muitas outras palavras, não eram pronunciados, mas foram mantidos na escrita, quer em Portugal quer no Brasil, por razões etimológicas. No Brasil antes de 1943 já se encontra fato, mas facto é de longe mais frequente. Quando é que o c de facto deixou de ser pronunciado no Brasil é naturalmente uma questão mais difícil de responder. Mas já em 1798 encontramos a palavra escrita sem o c nos estatutos de um seminário episcopal de Olinda, Pernambuco (grafia original e negrito meu em todas as citações):

Sendo pois, como é a Istoria da Igreja uma fiel narrasão dos fatos, que servem de provas da nossa crensa […] e a Ciencia Teolojica naõ sendo mais do que a arte de ligar, teser, e encadear os fatos que servem, e devem servir de provas de verdade
Estatutos do Seminario Episcopal de N. Senhora da Grasa da Cidade de Olinda de Pernambuco, 1798.

A palavra fatos repete-se quatro vezes. Além disso o autor escreve, por exemplo, Istoria, ómens e Ciencia Teolojica em vez do normal para época, que seria Historia, homens e Sciencia Theologica. Isto sugere que fatos não é gralha, mas que foi antes o autor que tentou escrever foneticamente, omitindo consoantes mudas.

O mesmo se observa no escritor brasileiro José de Alencar (1829-77) em Ubirajara (primeira edição de 1874; esta é de 1911), onde fato(s) ocorre oito vezes; eis um exemplo:

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o periodo colonial, devem ser lidos á luz de uma critica severa. É indispensavel sobretudo escoimar os fatos comprovados das fabulas a que servia de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espiritos acanhados, por demais embuidos de uma intolerancia rispida.

A escrita de Alencar é surpreendente: à parte da acentuação, que é a do século XIX e não a nossa atual, a escrita dele afasta-se da dos seus contemporâneos e aproxima-se extraordinariamente da nossa, principalmente pela supressão de consoantes mudas. O facto de ele escrever fato em vez de facto indica que ele não pronunciava o c.

Mas curiosamente também encontrei fato no lugar de facto em 1830 num autor português:

[Prisão] de facinorosos etc. quando for feita por Tropa de Linha, Milicias, ou Ordenanças deverá o Comandante dar uma Parte circunstanciada a quem entregar os presos; declarando o fato da prisão, o dia, a hora e o logar, em que ela se efeituou; […] juntamente com a indicação dos nomes das testemunhas, que presenceárão taes fatos, ou que tinhão razão de saber da conduta e genero de vida dos ditos presos.
João Crisostomo do Couto e Melo, Repertorio das Ordens do Dia Dadas ao Exercito Portuguez, 1830.

Também ele suprime consoantes mudas em geral. O seu uso de fato em lugar de facto indica que também em Portugal havia naquele tempo quem não pronunciasse este c.

8
  • Obrigado pela resposta, @Jacinto! Pode me indicar algum estudo sobre essa mudança de fonia que aconteceu no Brasil? Dada a dimensão do país e a alta diversidade de formas de falar, já presentes na década de 40, quais foram as regiões que serviram de base para a reforma? Como sempre foi uma curiosidade minha, mesmo que não tenha as respostas para essas perguntas, queria saber quais as referências mais indicadas para prosseguir o estudo.
    – felipe.zkn
    Aug 20, 2015 at 23:26
  • Infelizmente não sei de estudos sobre a evolução fonética no Brasil. Sei apenas das reformas ortográficas. Mas a maior parte das alterações gráficas poderá até não ter a ver com alterações fonéticas. Muitas das consoantes suprimidas foram sempre mudas. Foram os escritores do renascimento que as meteram nas palavras para as tornar mais parecidas com as suas origens latinas e gregas. A maioria das mudanças fonéticas refletidas na grafia deram-se quer no Brasil quer em Portugal, porque depois de 1943 as grafias dos dois países voltaram a ser praticamente iguais. Palavras como Fa(c)to são raras.
    – Jacinto
    Aug 21, 2015 at 10:46
  • como se escrevia antes das reformas. Os sotaques dos muitos falantes do português foi mudando de maneiras diferentes nas várias regiões, mas muitas vezes isso não necessita de aterações gráficas. Por exemplo, a grafia vinte serve para muitos sotaques diferentes, vintchi, vinti, vinte, vint (em Lisboa) e bint (muitas pessoas no norte de Portugal).
    – Jacinto
    Aug 21, 2015 at 10:54
  • Para estudar a evolução fonética no Brasil eu começava pela Wikipédia, lígua portuguesa ou português brasileiro e vê aligações e referências que lá há. Provavelmente já conheces isto, mas é o que eu posso sugerir.
    – Jacinto
    Aug 21, 2015 at 11:02
  • 1
    @felipe.zkn, descobri umas coisas que acrescentei à resposta. Creio que estarás interessado.
    – Jacinto
    Oct 18, 2017 at 23:33
0

Em minha humilde opinião, a vigência do uso etimológico da língua é mais interessante que a fonética, devido a variação extensa entre os falantes. Deste modo, creio que facto estaria mais etimologicamente correto que fato. O prefixo desta palavra foi mantido no inglês e espanhol em respeito as tradições etimológicas, fora a pronúncia. Não há, a meu ver, lógica em escrever factível e engolir o C em fato. É verdade que poetas e escritores podem dar-se a estas licenças, mas creio que na norma culta elas não deveriam ser feitas. Fato- Cardume de peixes, conjunto de duas peças de roupa, possivelmente do árabe hatu. Facto- do latim factum Fontes: https://dicionario.priberam.org/facto https://dicionario.priberam.org/fato

1
  • Também ressuscitarias o assumpto e o theatro?
    – Jacinto
    Apr 29, 2020 at 9:44

Your Answer

By clicking “Post Your Answer”, you agree to our terms of service and acknowledge that you have read and understand our privacy policy and code of conduct.

Not the answer you're looking for? Browse other questions tagged or ask your own question.