A visão dos linguistas Teresa Tavares (2000) e Carlos Rocha (2016) é que que nem começou por significar ’mais que’ (ou ’melhor/pior que’). Uma frase como comi que nem um abade (ditote comum em Portugal) originalmente teria subentendido algo como:
Comi que nem um abade [come tão bem]
Comi [tão bem] que nem um abade [come assim]
O significado ’mais que’ ainda aparece na Infopédia e no “verbete original” do Aulete, mas já não no “atualizado”; aparece também no Moraes Silva de 1891, o dicionário mais antigo em que encontrei a locução.
A generalidade dos exemplos mais antigos que encontrei, a partir de 1835 (ver abaixo), e os que se ouvem ainda hoje em Portugal, são deste tipo. Isto é, o que se quer dizer é que algo/alguém faz muito alguma coisa (comi que nem um abade = comi muito ou muito bem) ou que tem muito certa qualidade (magro que nem um espeto = muito magro). Portanto, interpretar que nem como ’mais que’ ou ’tanto como’ dá no mesmo: mais magro que um espeto ou tão magro como um espeto são duas maneiras exageradas de dizer que ele é muito magro. Isto facilitou a transição semântica de ’mais que’ para ’tanto como’.
Entretanto surgiram no Brasil usos como “o teclado se toca que nem piano” (exemplo apresentado por um brasileiro no artigo do Carlos Rocha). Aqui já não é possível compreender o nem que subentendendo algo como no exemplo do abade: não se quer dizer o teclado se toca que nem piano [se toca assim], nem isto faria sentido; aqui o significado de que nem não é ’mais que’ nem ’tanto como’, mas sim simplesmente ’como, parecido com, da mesma maneira que’.
No exemplos mais antigos que encontrei (indico ano da primeira edição), a interpretação ’mais que’ ou ’tanto como’ (ou ’melhor que’ ou ’tão alguma coisa como’) é geralmente possível, o que nos permite subentender algo para completar o sentido, como indico entre colchetes nos primeiros exemplos:
fallava o Arabe e Grego quem nem um papagaio (O Ecco, 1835; = que nem um papagaio fala assim, não sei se tanto ou se sem tino)
fallava que nem um livro (Alexandre Herculano, 1844; = que nem um livro [fala tanto])
levo uma vida que nem um cão (Feliciano Castilho, 1845; = que nem um cão [leva vida assim])
chorava que nem uma creança (Sebastião de Sá, 1848; = que nem um criança [chora tanto])
Sonhando que nem um rei (Jardim Litterario, 1849)
Vociferando, agora, que nem um Graccho, e esgrimindo, logo, que nem um Arunte? (Anónimo, 1851)
assanhado quem nem um gato bravo (Bem Publico, 1860)
gostava d’aquellas peras rijas, que nem pedras! (Júlio Dinis, 1867)
sisuda e séria que nem uma abbadessa de convento (Júlio Dinis, 1867)
Alegrou-se que nem gato com bogalho (Molliere traduzido, 1871)
calado que nem um rato (Dicionário de francês-português, 1874)
gorda que nem um texugo […] magra que nem um espeto (Amédée Achard traduzido, 1877)