Eu também pensei em tempos que história era o estudo do passado ou um relato de acontecimentos verídicos, e estória era uma narrativa ficcional. Mas não é bem assim. História segundo o Aulete digital e o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa engloba quer o estudo do passado e relatos verídicos quer as histórias da carochinha. O Aulete também tem o verbete estória, como narrativa ficcional, mas remete para história, que diz ser a forma preferida. O Dicionário da Academia nem sequer tem estória.
Finalmente, na triste história de estória o Prof. Cláudio Moreno desvendou-me o mistério. Explica ele que estória aparece em textos medievais, tal como hestoria, istoria, e estorea. Mas qualquer destas palavras tanto pode significar relato verídico como fictício. Era simplesmente a grafia que não tinha estabilizado. Na escrita de Camões a grafia já estabilizara em historia. No século XX puseram-lhe o acento. Foi em 1919 que o intelectual brasileiro João Ribeiro propôs a tal distinção entre estória e história. O novo termo foi popularizado em 1967 pelo autor brasileiro João Guimarães Rosa, mas nunca teve aceitação universal, como podemos ver no Aulete digital.
Posto isto fiz a minha própria pesquisazinha no Corpus do Português, e os resultado estão na tabela abaixo. Basicamente historia aparece no século XVI e substitui estoria e outras variantes.
Número de ocorrências no Corpus do Português
Século XIII XIV XV XVI XVII
Estoria(s) 2 382 407 22 1
Estorya(s) 0 234 10 4 0
Estorea(s) 0 0 11 8 0
Hestoria(s) 1 0 14 0 0
Historia(a) 0 0 2 356 386
A única ocorrência de estoria no século XVII é elucidativa. É de Bento Pereira, Thesouro da Lingoa Portuguesa, 1697 (Corpus do Português):
Estoria. Vide Historia
Ou seja, tratava-se simplesmente de duas variantes gráficas da mesma palavra. Em praticamente todos os casos que vi, estas palavras designam relatos que os autores acreditam ser verdadeiros. A exceção são fábulas de Esopo, econtradas num manuscrito do século XV, onde curiosamente se emprega hestoria (possivelmente uma variante surgida aquando da transição de estoria para hisoria). Eis alguns exemplos, como uma fábula completa no fim:
Ora leixaremos de fallar desto e tornaremos ao conto dos reis de Navarra pera hyrmos per esta estorya dos reis de Navarra em dyante. E despois tornaremos aos reis d'Aragom e de França e de Castella e de Leom e per qual guisa foron juntos os reynos de Castella e de Leon. Conta a estoria dos reis de Navarra que este rey dom Garcia, de que avemos dicto, foy filho de dõ Sancho, o Mayor. (Crónica Geral de Espanha, 1344.)
E por nom fazer longo prolego farei aqui começo em este virtuoso senhor, do qual veeo o valente e muito virtuoso conde estabre dom Nuno Alverez Pereira. E assi, de hi em diante, siguiremos nossa estoria. (Crónica do Condestável Nuno Alvarez, 1431)
Os homens prinçipais que com elle hião forão Gonçalo Rodriguez Caldeira, seu irmão João Caldeira, Simão Pedroso da Castanheda, Christouão Foreiro, Diogo Lobo de Sousa, que depois foi capitão de bardes, e outros que se nomearão pelo descurço da estoria que fizerão feitos abalisados. (Diogo do Couto, 1542-1616, Da Asia, Década VIII.)
O Livro de Esopo: XLVI [o leão e o rato]
Diz que foy hũa vez hũu leom que jazia em hũu mato de so hũa fremosa verdura. E os rratos ssobiam per çima d’elle, pera escarneçerem d’elle; e elle tomou hũu e queria-ho matar. E ho rrato lhe rrogou que lhe nom fezesse mall, ca nom seria ssa homrra, dizem[do q]ue [em] algũu tempo lhe poderia fazer algũu boo s[erviço]. E o leom o leixou, e nom lhe fez mall. [E ho] rrato lhe deu muytas graças.
E d’hi a [pouco] tempo cayo o leom em hũu laço que lhe fezerom os caçadores pera o filhar: e o leom começou de braadar altas vozes. E este rrato, a que ell perdoára a morte, lhe disse:
— Quamtos leões no mundo ssom nom te podem d’aquy liurar! Mays eu, que ssom a mais vill alimalia do mundo, pella graça e bem que me fezeste, te quero liurar.
E loguo ssobio e rroeo ha corda que tijnha no pescoço e liurou-[ho] d’aquelle prijguo. E o leom veem[do]-ss’ em liberdade, deu muytas graças ao rrato, e foy-sse sseu caminho.
Em esta hestoria o doutor emssina os grandes homẽes do mumdo e os poderosos, que nom despreçem os pequenos que ham pequeno poder, ca nom he nhũu homem de tam pequeno poder que nom possa seer proueytoso em algũu tempo aaquell que he gramde e poderoso. Tall seruiço lhe póde fazer hũu homem pequeno, que lh’o nom póde fazer hũu gramde.