Segundo Susana Durão (Patrulha de Proximidade: Uma Etnografia da Polícia em Lisboa, ISCTE, 2006), na gíria da polícia lisboeta já no princípio deste século, o termo mitra era usado “em relação aos pequenos delinquentes de rua, sobretudo para os pequenos traficantes de drogas” (p. 86); o termo tinha a sua origem no Albergue da Mitra, uma instituição criada “durante os primeiros anos do Estado Novo para recolher e manter em reclusão os mendigos da rua” (p. 237).
O termo já estava em uso na polícia em 2001. Numa entrevista de março desse ano, um agente relata que ficou pouco satisfeito quando foi trabalhar na área do trânsito, porque (negrito meu) “[c]omo muitos outros o que eu queria era andar à caça dos mitras” (p. 272). Também já era usado entre os seguranças do Metropolitano de Lisboa. Num artigo de 8-12-2001 no Público um segurança diz:
"De vez em quando aparecem aí uns ‘mitras’, como a gente lhes chama, a palmar umas sandes nas lojas ou umas carteiras às velhinhas
O Albergue da Mitra — oficialmente, o Albergue Distrital de Mendicidade de Lisboa — foi, segundo este artigo de 10-9-2014 no Público, criado em 1933 no antigo Palácio da Mitra, construído em finais do século XVII para residência dos prelados de Lisboa. O palácio tomou o seu nome da mitra (Priberam), um barrete usado por bispos, arcebispos e cardeais em cerimónias importantes.
Segundo o artigo, o Albergue “tornou-se uma espécie de ‘prisão’” e originou em Lisboa as expressões “‘ir para a Mitra’, usada por vezes como ameaça, ou até insulto”, e “‘vai para a Mitra’ [que] era usada como sinónimo de ‘não me chateies’”. Já em 1964, O Dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa regista ir, mandar à Mitra como “eufemismo plebeu de Lisboa”.
Da tese de Susana Durão fico com a ideia que mitra antes de referir ’delinquentes’ pudesse ter referido “os sem-abrigo, os vadios e as prostitutas”. Mas o texto não é completamente claro para mim, portanto aqui fica, para cada um tirar as suas conclusões (p. 237-8):
O termo tem uma origem histórica particular na realidade portuguesa […] o antigo Albergue da Mitra, criado durante os primeiros anos do Estado Novo para recolher e manter em reclusão os mendigos da rua; […] A Mitra foi encerrada nos anos 80 mas o termo e os sentidos estigmatizantes que traduziam persistiram. Os sentidos em uso revelam, todavia, a mudança do foco da patrulha nas últimas décadas: os patrulheiros começaram a controlar cada vez menos os “sujeitos da mendigagem” e a dar cada vez mais atenção aos complexos universos da droga, da traficância, dos esquemas, dos furtos e de todas as actividades ilícitas de rua. Da perspectiva policial de hoje os verdadeiros senhores das ruas são estes novos mitras e já não os sem-abrigo, os vadios e as prostitutas.
Fora do ambiente policial e segurança privada, a primeira referência aos mitras que encontrei foi no bog Odeio-vos de 29-8-2004. São descritos, já não como delinquentes, mas como jovens imbecis, rudes, e vestidos de maneira peculiar. Duas semanas depois, uma reposta diz que a descrição corresponde aos “gunas”, e que o mitras são aqueles que andam sempre à pala de qualquer coisa. Possivelmente eram já as diferenças terminológicas entre Lisboa e Porto.
Curiosamente, no Brasil
Mitra (Michaelis) pode significar:
1 Reg. (S.) Que ou aquele que tem esperteza ou sagacidade; esperto, finório, mitrado.
2 Reg. (S.) Diz-se de ou animal manhoso.
Isto poderá vir de mitrado, que segundo o Dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa (1964) significa: “[q]ue tem mitra ou o direito de a usar” e “[s]ábio, sagaz como um bispo”.