O tratamento do assunto pelo Bechara é razoabilíssimo. Taxar de erro todo e qualquer desvio à norma padrão é tacanhez. E se o professor procede assim com a Mariazinha, certamente não é o Bechara que tem a culpa.
Para quem ainda não viu, vale a pena ver por inteiro o que diz o Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) acerca do sufixo -íssimo:
Observação: Chamamos a atenção para as palavras terminadas em -io que, na forma sintética, apresentam dois is, por seguirem a regra geral da queda do -o final para receber o sufixo:
cheio → cheiíssimo, cheiinho
feio → feiíssimo, feiinho
frio → friíssimo, friinho
necessário → necessariíssimo
precário → precariíssimo
sério → seriíssimo
sumário → sumariíssimo
vário → variíssimo
Observação: a tendência da língua à fuga ao hiato leva a que apareçam formas com fusão dos dois ii, embora num ou outro adjetivo a eufonia impede a mudança: *fríssimo, *varíssimo, por exemplo, embora Dias Gomes (séc. XVIII) escrevesse propríssimo. Ainda que escritores usem formas com um só i (cheíssimo, cheinho, feíssimo, seríssimo, etc.), a língua padrão insiste no atendimento à manutenção dos dois ii.
Portanto o Bechara descreve a norma padrão, dois ii, e a escrita desviante só com um i de alguns escritores. Agora, é preciso ver a natureza da norma padrão e desvios a ela. A língua compreende, e sempre compreendeu, muitas variedades; uma dessas variedade é a norma culta, que compreende, ela mesma, grande diversidade. Dessa variada norma culta extrai-se a norma padrão. Nas palavras do Prof. Carlos Alberto Faraco (ver esta pergunta, em que eu tratei esta questão mais desenvolvidamente):
a norma padrão é uma codificação relativamente abstrata, uma baliza teoricamente extraída do uso real para servir de referência a projetos políticos de uniformização linguística.
Algumas pessoas, como o proverbial professor da Mariazinha, parecem querer inverter isto. Parecem pensar que a língua começa com a norma padrão, como se a língua tivesse sido criada a régua e esquadro por uma comissão de sábios, e que qualquer desvio a essa norma padrão é um erro; é as pessoas que não sabem falar.
Mas um desvio à norma padrão pode ser simplesmente uma parte dessa diversidade, que existe mesmo dentro da norma culta, que ficou de fora da norma padrão. No caso em apreço encontra-se no uso culto formas com dois ii e com um só i. A norma padrão elegeu a forma com dois ii. É possível que tenha sido esta a forma mais comum no passado; uma busca sumariíssima no Google Books para isso aponta (mas, possível exceção, nos século XIX só encontrei sumaríssimo, não sumariíssimo). Os dois ii podem ser enquadrados numa regra geral: quando o adjetivo termina em vogal simples a, e ou o, a vogal cai e acrescenta-se -íssimo (belo → belíssimo), como menciona o Bechara. Como este sufixo foi introduzido na língua tardiamente por via culta, é natural que a aplicação de uma regra geral tenha tido peso. E nalguns casos os dois ii são indispensáveis: ninguém entenderia *fríssimo ou *píssimo; tem de ser friíssimo e piíssimo (de pio).
Portanto a norma padrão elegeu uma derivação regular: cai a vogal final e acrescenta-se o sufixo. Mas mesmo na expressão culta, surgiram formas com um só i por razões de eufonia, que têm vindo a ser crescentemente adotadas. Quer-me parecer que mesmo a norma padrão — o que dizem as gramáticas e dicionários — está em fluxo, e que o Bechara está no extremo mais conservador. No dicionário Houaiss (Lisboa, 2002) e no Vocabulário Ortográfico Comum da CPLP encontrei apenas formas com os dois ii, mas existem já gramáticos que vão mais longe que o Bechara, e dizem não só que há escritores que usam formas com um só i, mas, explicitamente, que as duas formas são aceitáveis. Ver artigo do Prof. Pasquale na Folha de S. Paulo e estoutro da Cláudia Pinto no FLiP.