2

Qual a origem da expressão "A água corrente não mata a gente"?

É de Portugal ou Brasil?

1
  • Sabes se é usada em algum dos dois países? Procuraste? Encontraste usos nos dois países?
    – ANeves
    May 7, 2020 at 13:44

1 Answer 1

4

Existem versões desse provérbio em várias línguas. Em italiano já existia em 1612:

L’acqua che corre, non porta veleno [A água que corre não traz veneno]
Vocabolario degli Accademici della Crusca, Veneza, 1612

Segundo Le Livre de Proverbes Français já existia no século XV em francês:

Esve (eau) que court ne porte point d’ordures [Água que corre não traz imundícies]
Le Livre des Proverbes Français, Paris, 1842

Em espanhol temos o mesmo que em português — “Agua corriente no mata gente” — registado em 1900 neste La Argentina de H. Damián.

Em português, o mais antigo que encontrei foi em 1882, mas já então era considerado um velho rifão:

Ha um velho rifão que diz — agua corrente não mata. Esta sentença conhecida e sabida de todos, é santificada pela sciencia.
Commercio de Portugal, Lisboa, 17-11-1882

A versão longa só encontrei em 1931:

[…] o adágio: água corrente não mata gente, tirado de justa observação da Natureza.
Revista Lusitana, v. 28, Lisboa, 1931, p. 179 (disponível na Biblioteca Digital Camões)

Estes exemplos em português sugerem que a mensagem deste provérbio teve a sua origem na “justa observação da Natureza”, depois “santificada pela sciencia”. No campo, especialmente em tempos passados, livres de pesticidas e adubos químicos, as águas correntes dos ribeiros eram razoavelmente seguras; as paradas eram mais propícias ao desenvolvimento de germes e acumulação de porcaria. Eu cresci numa comunidade agrícola, nunca ouvi este provérbio, mas o meu pai dizia-me para beber de águas correntes, mas não das paradas.

Em publicações brasileiras, só encontrei o provérbio em 1948 (Cid Cercal, Troças e trocas). Mas também encontrei lá em 1900 a ideia que a água corrente “sanifica” enquanto a “empantanada” “apodrece e empesta” (A Imprensa, Rio de Janeiro, 1900) e que “pela agua corrente não póde chegar ao intimo do organismo a larva do parasita” (Brazil-Medico, Rio de Janeiro, 1904).

Os provérbios são uma forma de expressão da sabedoria popular e podem ser transmitidos oralmente durante séculos antes de serem escritos (especialmente, em algo que eu consiga encontrar na internet). Que as águas correntes é que são boas para beber deve ser coisa que todos os povos antigos sabiam. Dada a antiguidade das versões italiana francesa, não me surpreenderia nada que este ditado ou versão equivalente existisse em Portugal já na Idade Média e que tivesse sido levado pelos primeiros colonos para o Brasil. E também me surpreenderia nada que os nessa altura os índios tivessem também as suas versões.

1
  • Resposta muito completa e interessante.
    – ClMend
    May 8, 2020 at 9:22

Your Answer

By clicking “Post Your Answer”, you agree to our terms of service and acknowledge that you have read and understand our privacy policy and code of conduct.

Not the answer you're looking for? Browse other questions tagged or ask your own question.