Essa perífrase verbal foi comum até ao século XIX, sendo usada com três funções muito distintas. A saber, é ou foi usada no lugar do:
(A) Pretérito mais que perfeito do subjuntivo: houvera bebido = ’houvesse/tivesse bebido’
Sentia-se estranhamente maciço por dentro, como se houvera bebido gesso.
Raul Pompeia (1863-95), O Ateneu
(B) Futuro do pretérito: houvera gritado = ’haveria/teria gritado’
[…] se tivesse acontecido alguma desgraça, Ricardo houvera gritado por socorro.
José de Alencar (1829-77), Sonhos d’ouro
(C) Pretérito mais que perfeito do indicativo: houvera arriscado = ’havia arriscado, arriscara’
sentia-se já arrependida do que houvera arriscado
(Aluísio Azevedo)
Depois do século XIX, esta perífrase verbal foi caindo em desuso, e os usos (A), de longe o mais comum no passado, e (B), raramente se encontram atualmente. Foi com muita dificuldade que encontrei estes exemplos (explicação minha entre colchetes):
Se eu houvera dito [tivesse dito] isso, estaria liquidado.
Anais do Senado Federal, 1994
A famosa biblioteca Real da Ajuda sumiu no incêndio de 1755. Se não, também houvera vindo [teria vindo].
Antônio Bulhões, Diário da cidade amada: Rio de Janeiro 1922, v. II, 2015
Já o uso (C) se encontra com alguma frequência em livros e imprensa recentes, mas praticamente só no Brasil. Alguns exemplos:
o pai declarou falsamente que ele houvera nascido [tinha nascido] em 18 de julho de 1964
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,8-9-2015
Eu dava risadas em casa, enquanto o tal comentarista engolia em seco o que houvera dito [tinha dito].
Marcos Eduardo Neves, Alex, a biografia, 2015
Que dizem as gramáticas?
As duas atuais que tenho em casa — Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Culnha e Lindley Cintra (Lisboa, 2014) e Gramática do Português (Gulbenkian, Lisboa, 2013) — não dizem uma palavra sobre este tempo. Nas online, também não encontrei nada. Mas encontrei o uso (C) — ex. houvera estudado = ’tinha estudado’ — num Dicionário de conjugação de verbos de 1975 Bárbara Vasconcelos de Carvalho (excertos 1 e 2). A autora chama-lhe simplesmente “mais que perfeito composto”:
b) Mais-que-perfeito composto: particípio do verbo que se conjuga, com o imperfeito do indicativo dos auxiliares — tinha estudado — havia estudado. Esta composição é a mais usada na linguagem moderna. Também pode ser feita com o mais-que-perfeito simples (tivera estudado — houvera estudado), porém superada hoje.
Entretanto os usos (A) e (B) — houvera visto significando ’houvesse visto’ e ’haveria visto* — são parte de um fenómeno mais geral. Explicam a Gramática do Português (tomo I, p. 58) e a Gramática Histórica da Lingua Portuguesa (1931) de Said Ali (p. 107 da 2ª parte) que o pretérito mais que perfeito simples do indicativo (p. ex. ficara, perdera), além da função que já tinha no latim, ganhou no português certas funções do imperfeito do subjuntivo (houvesse, tivesse, etc.) e do futuro do pretérito ou condicional (haveria, teria). A Gramática do Português exemplifica com a passagem d’Os Lusíadas em que Camões diz que a “pequena Casa Lusitana” chegou a todo o lado e
“se mais Mundo houvera, lá chegara”.
Em português atual diríamos que “se mais Mundo houvesse, lá chegaria”. Portanto, o que acontece é que houvera/tivera em perífrases verbais como houvera/tiver visto pode estar a fazer o papel de houvesse/tivesse (uso A) ou de haveria/teria (uso B).
Conclusão
O chamado pretérito mais que perfeito anterior (p. ex., houvera visto) é simplesmente forma alternativa do pretérito mais que perfeito do subjuntivo/conjuntivo (houvesse visto) do condicional composto/futuro do pretérito mais que perfeito (haveria visto) — formas que caíram em desuso — ou do pretérito mais que perfeito do indicativo (havia visto, vira), uso que ainda se vê na literatura e imprensa brasileira recentes. A minha impressão é que o uso recente é uma imitação deliberada da linguagem antiga, já que eu nunca ouvi ninguém, português ou brasileiro, falar assim.
E para curiosos, aqui ficam mais exemplos, antigos e modernos
Como não encontrei nada isto explicado em nenhuma gramática (presumivelmente os gramáticos deram isto por extinto) e formei o meu entendimento na observação de montes de exemplos, e já que me dei ao trabalho de apontar muitos deles, aqui ficam mais alguns.
Dessa feita, estava montado num cavalo muito bom, esquipador, que houvera comprado [tinha comprado] recentemente
Elces Sampaio, De mundo até aqui, 2019
Dir-se-ia que, afinal, teria encontrado a sua turma da qual se houvera perdido [tinha perdido] nos ínvios e inconstantes caminhos da rasteira política de interesses.
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 14-4-2016
Estive com o [César] de Campos, que me mostrou a nota recolhida acerca das duas agências. Disse-me que já houvera pedido [tinha pedido] de transferência
Machado de Assis (1839 – 1908), Obra Completa
Simeão acabava de contar dezenove anos e nunca houvera sofrido [havia sofrido] castigo algum corporal
Joaquim Manuel Macedo, Vítimas-Algozes, 1869
Já vi tudo o que havia de ver n’esta vida e prouvera a Deus que não tivera visto [tivesse visto] tanto.
Pe. António Vieira (1608 – 97), O Chrysostomo portuguez, 1879.
Esta passagem seria hoje inintelligivel, se não houveramos estudado [tivéssemos estudado] o modo de ser das classes inferiores fóra dos municipios.
Alexandre Herculano (1810 – 77), História de Portugal, tomo IV, Lisboa 1853, p. 78.
Se te vem a dizer que algum ha fallado mal de ti ; responde sómente , que naõ sabe todos teus vícios : porque houvera dito mais , se o houvera conhecido [teria dito mais, se o tivesse conhecido]
Diogo Guerreiro Camacho de Aboim (1658 – 1709), Escola Moral, Política, Cristã e Jurídica, Lisboa, 1759
[…] attesta a grande massa de riquezas que já houvéramos colhido [teríamos colhido], si tivéssemos logrado explorar por esse meio os nossos admiráveis recursos
Anais do Parlamento Brazileiro, Rio de Janeior, 1887
E afinal o princípio de Peter (Wikipédia) já houvera sido descoberto por um português no século XVII:
Quantos por falta de modestia vemos em cargos superiores à sua capacidade; que se houveraõ ficado [tivessem ficado] nos menores, e elegido estado adequado a seu talento, nem elles foraõ [seriam] mal reputados, nem o Reyno mal servido.
Diogo Guerreiro Camacho de Aboim (1658 – 1709), Escola Moral, Política, Cristã e Jurídica, Lisboa, 1759, p. 404