Distopia na aceção médica ’localização anormal de um órgão’ aparece já em 1913 no dicionário de Cândido Figueiredo; na aceção ’lugar imaginário ruim’, só encontrei a partir de 1958. O dicionário Houaiss, o melhor que eu conheço em matéria de etimologia, só traz a aceção médica, e só a atesta em 1926.
Isto é paralelo à evolução do inglês dystopia, em que a palavra portuguesa certamente se inspira. Segundo o Etymoline, o inglês dystopia está atestado na aceção médica em 1844, e em 1952 na aceção ’lugar imaginário ruim’; mas havia nesta aceção o adjetivo dystopian já em 1868. A palavra foi formada a partir prefixo de origem grega dys-, dis- no português atual, ’mau, anormal’; e -topia de utopia, do grego tópos, ’lugar’. Portanto, literalmente ’lugar anormal (para o órgão)’ e ’lugar ruim’.
Localização anormal
Depois do dicionário de Cândido de Figueiredo de 1913 (distopia e dystopia; 2ª edição; na 1ª, 1899, não vem), encontrei o adjetivo em 1916 e o substantivo em 1920 (grafia original, negrito meu em todas as citações):
Minuciosa exploração determinou que tal tumor era constituido por um orgam dystopico, — o rim direito
Dr. Rocha Vaz, “A dôr nas desordens renaes”, Brazil-Medico, Rio de Janeiro, 9-9-1916
Dentre essas [condições pathologicas] ressaltam em primeiro plano: a ulcera duodenal, a cholelithiase chronica, os processos appendiculares, as enterites e a dystopia renal.
Dr. Rocha Vaz, “Dores Gastricas”, Brazil-Medico, Rio de Janeiro, 20-3-1920
Este uso encontra-se com frequência a partir de então no Google Books e na Hemeroteca Digital Brasileira. Nas décadas de 1930 e 1940 são frequentes as grafias distopia e dystopia. A distopia do rim parece ser de longe a mais comum.
Lugar imaginário ruim
O exemplo mais antigo que encontrei, seis anos depois de a palavra estar atestada em inglês, foi num comentário sobre Zé Fernandes, personagem-narrador de A Cidade e as Serras (1901) de Eça de Queiroz; o autor inclui uma explicação de distopia entre parênteses, o que sugere que ele não esperava que os leitores conhecessem o termo:
Para Zé Fernandes, pelo contrário a Cidade nunca poderá dar trânsito a qualquer Eutopia, mas sim ao mesmo tipo de Distopia (lugar não agradável) em que se tornarão no século XX as cidades fabulosas e kafkianas da science fiction [p.54]
[...]
A capital francesa, na última visão que dela nos dá Zé Fernandes (capítulo XVI e último do livro), transformara-se de vez na Distopia da ficção científica. [p. 68]
Alexandre Pinheiro Torres, Ensaios escolhidos: estudos sobre as literaturas de língua portuguesa, v. 1, 1958
Na Cidade e as Serras, o protagonista, um homónimo meu, começa por ser um parisiense apaixonado por todas as modernices, para depois se render aos encantos da vida simples lá para as serranias do Douro. Já no exemplo seguinte, uma década mais tarde, distopia refere-se a sociedades totalitárias, com um controle do governo sobre o indivíduo para lá dos sonhos de Mao Tsé-Tung, tais como imaginadas por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo (1932) e George Orwell em 1984 (1948):
Na distopia que Huxley publicou em 1932 [p. 70]
[...]
[…] a distopia “My” do escritor russo Eugênio Zamyatin, frequentemente apontada como fonte de Brave New World e 1984. [p. 155]
Estudos anglo-hipânicos, 1968
Vão-se continuando a encontrar exemplos no Google Books, e o uso explode já neste século.