O Halloween foi também conhecido por witches’ night, e aparentemente foi este nome que na década de 1920 foi traduzido para português como noite das bruxas e adaptado para dia das bruxas. Aliás, até 1936, noite das bruxas é bastante mais frequente que dia das bruxas; mas muito mais frequente ainda era festa das bruxas, possivelmente por estes termos ocorrerem quase exclusivamente em notícias sobre festas promovidas por casinos cariocas.
Alguns exemplos anteriores de dias das bruxas não têm que ver com o Halloween.
Witches’ Night e o Halloween
Diz a Encyclopedia of Superstitions, Folklore, and the Occult Sciences (1903, p. 1487) que:
Hallowe’en was called the “Witches’ Night,” “the Devil’s Sunday,” when his Satanic majesty was supposed to have full charge of all mundane things.
[Minha tradução:] O Halloween era chamado a “Noite das Bruxas”, “o Domingo do Diabo”, quando sua Satânica majestade era suposta ter o comando de todas as coisas mundanas.
Estes nomes parecem ter origem numa lenda acerca de uma reunião das bruxas sob orientação do Diabo nessa noite. Na página 1483, a enciclopédia narra outra lenda diferente de uma reunião das bruxas na noite de Haloween.
Os termos witches’ night ou withch-night aparecem com frequência no lugar de Halloween na imprensa norte-americana do princípio do século XX. Por exemplo:
These boys have a wrong conception of Hallowe’en, believing the only way to celebrate the witches’ night is by the wanton destruction of property.
“Unruly boys land in jail for their fun,” Tonopah Daily Bonanza, Las Vegas, 31-10-1911,
Mais alguns exemplos (links ao texto integral, com texto destacada a cor-de-rosa): The Sun, (Nova Iorque, 1905), The Sun (Nova Iorque, 1907), Evening World, (Washington DC, 1911), Valdez Daily Prospector (Alaska, 1916), East Oregonian, (Pendleton, 1918), New York Tribune (1921), The Seatle Star (1922), Evening Star (Washington DC, 1928).
“Noite das bruxas” no Rio de Janeiro a partir de 1928
Não sei se ainda se o nome witches’ night ainda continua em uso, mas em 1928 ainda aparecia na imprensa norte-americana. E foi precisamente a partir de 1928 que na Hemeroteca Digital Brasileira, que tem o texto integral de centenas de periódicos brasileiros dos últimos dois séculos, surgem pela primeira vez, em referência ao Halloween, os termos noite das bruxas, dia das bruxas e sobretudo festa das bruxas.
O grande responsável foi o Beira-Mar Casino do Rio de Janeiro, que de 1928 a 1936 celebrou a ocasião, com uma festa “dedicada à colónia norte-americana”. Em 1931 teve concorrência da boite Maxim, e em 1934 do Casino da Urca. Todos estes eventos foram amplamente noticiados na imprensa carioca. Depois de 1936, desaparecem das páginas dos jornais as referências a festa, noite ou dia das bruxas, para só reaparecerem em meados dos anos 50, agora já em vários pontos do Brasil.
O nome comummente usado nas notícias é festa das bruxas — aparece em 130 artigos de 1928 a 1936; noite das bruxas aparece em 20 artigos, e dia das bruxas apenas em 3 (o mesmo artigo reproduzido em três jornais; as outros números também incluem repetições). Deixo aqui alguns excertos de notícias de 1928:
“A festa das bruxas” (All hallow’s Eve), no Beira Mar Casino.
Não é uma festa commum, das muitas que semanalmente o Beira Mar Casino celebra, a que vai realizar-se na noite do dia 31 do corrente e que é dedicada á colonia norte-americana, que obedecendo sempre ás suas tradições e seus costumes não esquece o seu dia: “All hallow’s Eve” ou seja o “Dia das bruxas”.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20-10-1928
O acontecimento do mez que vai findar é o de amanhã, á noite, no Beira Mar Casino, onde se realiza a tradicional festa norte-americana da “Noite de bruxas”.
A “Festa das bruxas” conta com mil motivos de exito […]
“Diversões”, O Paiz, Rio de Janeiro, 30-10-1928
A Festa das Bruxas — a americanissima, exotica All Hallow’s Eve — foi o clou social, elegante e chic da semana. Era uma coisa excentrica, e Melindrosa não poderia faltar, como não faltou. Com seu rostinho pallido, maquillé em arco-iris, era ella a mais linda e encantadora bruxinha que se exhibia naquele salão indiano, ornamentado e illuminado a propos.
“Sombras Chinezas”, Fon-Fon, Rio de Janeiro, 10-11-1928
Outros usos de dia das bruxas antes de 1928
Encontram-se algumas ocorrências de dia das bruxas anteriores a 1928, mas não se referem ao Halloween.
Nuns casos referem-se a uma sexta-feira; aparentemente uma qualquer. Por razão que desconheço, gerou-se a ideia de que sexta-feira é o dia das bruxas. Exemplos no Diário do Rio de Janeiro (1875), Gazeta Luzitana, (Rio de Janeiro, 1885), Correio Paraense (1893) (neste caso é uma “noute das bruxas”) e Diario de S. Luiz (1922)
Noutros casos, é o sábado que é o dias das bruxas. É o caso no Commercio de São Paulo (1894), e “dias das bruxas e dos duendes” no Jornal da Noite (Rio de Janeiro, 1878-79), apontado nos comentários acima pelo Valdeir. Isto parece vir da ideia do sábado ou sabbat das bruxas (Wikipedia), já mencionada em 1828 pelo Almeida Garrett (Adozinda, p. 117).
Esta ideia de haver um dia das bruxas (pelos vistos, todas as semanas!), mesmo não tendo nada que ver com o Halloween, talvez facilitasse a adoção dos termos dia ou noite das bruxas para designar as celebrações, dado as bruxas serem um tema proeminente no Halloween.
Curiosidade: o “trick or treat” e o “pão por deus”
Nos Estados Unidos não há Halloween sem “trick or treat”. Em Portugal há o “pão por deus”, que tem algumas semelhanças e claramente a mesma origem. O trick or treat (Wikipedia) tem origem no guising da Escócia e Irlanda, em que “no Halloween, pessoas iam mascaradas de porta em porta, recitando versos em troca de comida, e por vezes agoirando má-sorte quando não eram bem recebidas” (minha tradução da Wikipedia).
Em Portugal e na Galiza há ou houve basicamente a mesma tradição, conhecida por pão por deus (Wikipédia) nalgumas regiões. Há imensos relatos de crianças ou jovens irem no dia de Todos os Santos de porta em porta recitando versos pedindo “pão por deus” ou “bolinhos”, e retaliando com versos escarninhos ou agoirentos em caso de recusa. Outra coisa em comum é a comida nalguns lugares ser pedida para os mortos. Mais espantoso ainda, para mim, é uma tradição registada em Coimbra e Anadia: as crianças iam “ao cair da noite, com uma abóbora oca e com buracos recortados a fazer de olhos, nariz e boca, como se fosse uma caveira, e com um coto de vela aceso por dentro, para lhe dar um ar mais macabro” (Wikipédia)! Esta abóbora é um exemplo de representação de um coco ou coca (Wikipédia) (pronunciados côco, côca), um ser mítico para assustar crianças, e segundo vários autores é uma tradição muito antiga em Portugal.
Estas tradições portuguesas são antigas e estão muito bem documentadas. Há registo delas já em 1851 nos Açores e em 1885 em Alpedriz (uns 100 km a norte de Lisboa). E há um levantamento de meados do século XX destas tradições por todo o Portugal. Este inclui a zona em que eu cresci, arredores de Torres Vedras, e pelo menos neste caso o autor foi fidelíssimo: na minha aldeia a criançada limitava-se a ir de porta em porta pedindo “pão por deus”. Não me passava pela cabeça que havia em Portugal esta coisa dos versos e abóboras iluminadas! Há também registo destas tradições no estado de Santa Catarina, no Brasil (Wikipédia e Tradições de Florianópolis).
Voltando à pergunta propriamente dita, o que eu não encontrei nestes relatos da tradição em Portugal, Galiza, e Santa Catarina, foi qualquer referência a bruxas. Também isto sugere que o nome dia das bruxas não vem da tradição luso-brasileira. Aliás, nenhum dos imensos anúncios e artigos sobre as “festas, “dias” e “noites das bruxas” na imprensa brasileira dos anos vinte e trinta faz qualquer alusão a tradições brasileiras ou portuguesas. O nome dia das bruxas inspirou-se portanto noutra tradição qualquer, provavelmente, tal como a celebração propriamente dita, no witches’ night do folclore norte-americano.