Significado e Uso
Os doze dicionários¹ dos últimos trezentos anos que consultei concordam: miríade significa apenas ‘dez mil’ ou ‘número muito elevado’; só por si, miríade não significa ‘quantidade de insetos’ ou de qualquer outra coisa em particular. Os exemplos da literatura no Google Books, abundantes nos últimos dois séculos, confirmam: encontramos muitos miríade de insetos, de estrelas, de anjos, de cores, de estilos, de tudo o que se queira; mas miríade sem dizer de quê, não se encontra.
A aceção ‘dez mil’ só se encontra em obras antigas: excluindo edições e citações posteriores dessas obras, o último exemplo que encontrei é de 1622; a partir daí só encontrei a aceção ‘número muito elevado’. Isto assemelha-se à situação no inglês. Diz o Etymoline que (tradução minha) “o uso especificamente numérico encontra-se habitualmente em traduções do grego ou latim”, línguas em que a palavra era realmente usada no sentido ‘dez mil’.
Classificação: substantivo coletivo ou o quê?
Miríade tem de facto cabimento entre os substantivos coletivos. Há coletivos de dois tipos: os dependentes, como pilha, que precisam de um complemento, como de pratos, de livros, de caixas, etc.; e os autónomos, como maquinaria, que não admitem complemento, ou como matilha que admite um complemento opcional e redundante—podemos dizer só matilha ou matilha de cães. Miríade pertence ao dependentes. Quando pensamos em substantivos coletivos, creio que são os autónomos que mais facilmente nos vêm à cabeça. De modo que para os dependentes eu vou apelar à autoridade da Gramática do Português (Gulbenkian, Lisboa, 2013, tomo I, p. 973-4):
Em contrapartida, os nomes coletivos que não representam lexicalmente o tipo de entidades que formam o grupo chamam-se coletivos dependentes ou agrupadores […] são exemplos braçada, conjunto, grupo e montão.
Estes nomes coletivos necessitam de ser complementados por uma expressão adicional que introduza informação sobre a composição do grupo […] cf. braçada {de flores/de lenha}, conjunto {de regras/de países}, grupo {de deputados/de rapazes}, montão {de pedras/de destroços}. Nestes casos, é a combinação do nome com o sintagma preposicional que forma uma expressão coletiva semanticamente completa, equivalente a um nome coletivo autónomo.
Estes nomes coletivos dependentes não são inteiramente pacíficos. A Gramática do Português explica (p, 974) que:
Por não serem semanticamente completos, algumas gramáticas excluem inteiramente da classe dos coletivos os nomes aqui tratados como coletivos dependentes (ver, p.e., Bosque 1999), argumentando que se trata, na realidade, de quantificadores lexicais indefinidos do tipo de alguns, muitos, vários, etc.
Nesta perspetiva, miríade seria um quantificador lexical indefinido, por miríade de insetos ser mais ou menos o mesmo que muitíssimos insetos.
A minha primeira reação foi, como o ANeves acima, considerar miríade um numeral coletivo, como dúzia, milhar, milhão, usado muito vagamente. O problema é que na linguagem corrente miríade significa apenas numero muito elevado; o sentido dez mil aparece apenas em obras antigas ou comentários sobre essas obras. Deve ser por isto que encontrei miríade em várias listas de substantivos coletivos, mas não de numerais coletivos.
Nota sobre a tabela
Posto isto, a tabela é no mínimo confusa e induz facilmente em erro, porque não deixa claro como é que o conteúdo da coluna da direita deve ser interpretado. O leitor poderia pensar que de insetos está para miríade tal como, logo na linha acima, de cães está para matilha, isto é que que miríade só por si pudesse significar ‘conjunto de insetos’ tal como matilha significa ‘conjunto de cães’. Tanto mais que logo poucas linhas acima houve o cuidado de juntar um etc. para indicar que de bois e de elefantes são apenas dois dos complementos possíveis de manada (e o mesmo com nuvem umas linhas abaixo), coisa que não foi feita com o de insetos da miríade.
Etimologia
A palavra vem do grego myrias, myriados no genitivo, que já significava ‘dez mil’ ou ´número incontável’; passou ao latim tardio, myriadis no genitivo; aparece em francês como myriade na aceção ‘dez mil’ em 1525 e ‘número infinito’ em 1557 (ver CNTRL); e em inglês como myriad em 1550-60 (Etymoline).
Em português encontrei myriada em 1597² e meriada em 1622.³ Estas são os únicos exemplos que encontrei no sentido ‘dez mil’ (tirando citações posteriores destas obras). A palavra vem no Vocabulario Portuguez e Latino Raphael Bluteau (1728) que dá apenas a aceção ‘dez mil’; o [dicionário de Moraes Silva de 1789] faz o mesmo, mas a 4ª edição, de 1831, já acrescenta o significado figurado ‘grande multidão’, dando como exemplo “Miriadas infindas de Serafins cercão seu trono”. O dicionário de Domingos Vierira de 1873 dá a aceção ‘dez mil’ como “Termo de Antiguidade” e diz que na “linguagem ordinária” (isto é, ‘linguagem comum’; ordinário naqueles tempos não significava ‘reles, mau’; era só o oposto de extraordinário), significa “quantidade indefinida e innumeravel”, o que pelo que eu vi no Google Books reflete tanto o uso no século XIX como o atual.
Notas:
¹ Doze dicionários (19 edições): Raphael Bluteau (1728), Morais Silva (1789, 1813, 1823, 1831, 1858, 1877), Domingos Vieira (1873), Cândido de Figueiredo (1899, 1913, 1939), Sociedade de Língua Portuguesa (1958-71), Lello Universal (1992), Academia das Ciências de Lisboa (2001), Houaiss (Lisboa, 2002) e dicionários online, Priberam, Infopédia, Aulete, Michaellis.
² “[D]igamos com Nicephoro Calixto, que em todo o Imperio Romano, se contarão nesta discripção vinte & seis mil, & trinta & sete Myriadas, & vallendo cada Myriada dez mil, vem a somar duzentos & sessenta contos, & trezentas & settenta mil pessoas.” Frei Bernardo de Brito, Monarchia Lusitana, 1ª parte, Alcobaça, 1597, p. 415.
³ “[O] Ceo empireo tem de comprimento dez mil, trezentas, quatorze meriadas, oitocẽtos, cincomil, setenta, & dez milhares de passos, & em largura tres mil, seis centas meriadas.” Padre frey Antonio Rozado, Tratados sobre os quatro novíssimos conlugares comuns, Porto, 1622, p. 311.