Re:
será correto usar os particípios segundo a regra que citei acima [particípio passado regular deve ser usado com os verbos ter e haver, e o irregular com os verbos ser e estar]?
Não seria a hora de deixar cair essa «regra»?
Não, a regra não desapareceu totalmente.
A observação de que o uso simultâneo das duas formas tem caído em desuso é correta, mas este processo não está completo.
Duas ótimas discussões a respeito podem ser encontradas numa postagem no Migalhas e numa resposta no Ciberdúvidas, que reproduzo abaixo:
Migalhas:
Pegar
José Maria da Costa
quarta-feira, 16 de abril de 2014
Atualizado em 5 de outubro de 2022 16:00
A leitora Cíntia Pereira envia a seguinte mensagem ao Gramatigalhas:
"E quanto ao verbo pegar; o correto é dizer 'tinha pego' ou 'tinha pegado'?"
1) Na lição de Luiz Antônio Sacconi, "o verbo pegar é abundante na língua familiar; não o é na língua culta".
2) Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante lecionam que esse verbo, na língua culta, apresenta apenas o particípio passado regular (pegado).
3) Antonio Henriques, de igual modo, preconiza pegado como a "única forma aceitável do particípio passado de pegar".
4) Silveira Bueno preconiza a continuidade de existência e a possibilidade de uso normal de ambos os particípios - pegado e pego - de acordo com as regras previstas para os verbos abundantes no particípio: "com os verbos ter e haver usamos o particípio longo, invariável... Com os verbos ser e estar usamos o particípio breve, variável".
5) Na lição de Vitório Bergo, o particípio passado regular (pegado) é "forma correta, usada pelos clássicos em vez de pego, que é moderna, e nos diversos sentidos usuais, como seguro, medrado, rente, etc.".
6) Para Cândido de Oliveira, "ganho, gasto, pago, pego são usados indiferentemente para ambas as vozes (com qualquer auxiliar)", e "os particípios ganhado, gastado, pagado, pegado tendem a desaparecer".
7) Em outra obra escrita com Regina Toledo Damião, anota Antonio Henriques que, "apesar do uso corrente da forma pego, ainda sobrevive entre bons autores a forma pegado" na atualidade.
8) Para Sousa e Silva, que invoca a autoridade de Eduardo Carlos Pereira e de José Oiticica, pego "é um dos particípios de pegar (o outro é pegado), desconhecido, talvez, em Portugal, mas comuníssimo no Brasil".
9) Domingos Paschoal Cegalla assim resume a questão da sintaxe desse verbo, no que tange ao uso de seu particípio passado: a) Pegado "se usa com os verbos ter e haver" (Homens da vizinhança tinham (ou haviam) pegado o animal); b) Pego é "forma contrata de pegado" e "se usa, de regra, com os verbos ser e estar" (O cão foi pego pelos moradores da vizinhança - O animal estava pego); c) "Há tendência para se usar pego na forma ativa" (Um morador vizinho tinha (ou havia) pego o animal).
10) Ante a divergência apresentada entre os gramáticos, podem-se extrair as seguintes conclusões, de integral validade para o usuário da norma culta: a) o verbo pegar é abundante, assim na língua familiar como na língua culta, apresentando os dois particípios passados - pegado e pego; b) com tais particípios, o normal é seguir as regras previstas para os verbos abundantes e usar pegado com os verbos ter e haver, e pego com os verbos ser e estar; c) empregar, todavia, pego com os auxiliares ter e haver não pode ser considerado um erro; d) se pegado tende a desaparecer, o certo é que ainda existe e é usado em nosso idioma nos dias de hoje.
11) Ultime-se com a anotação de que a pronúncia do particípio passado irregular pego é fechada (ê), e não aberta (é), como alguns teimam em dizer, até porque pego "com a vogal e aberta é forma do verbo pegar (eu pego)".
Ciberdúvidas:
Pagado, ganhado e gastado: particípios em desuso?
Pelo visto, estou ultrapassado. Aprendi há muito que pagado é um arcaísmo, embora o Saramago, talvez por influência do castelhano, do catalão ou do valenciano, o use com frequência nas suas obras. Quanto a o gastado e o ganhado terem dado o lugar a gasto e a ganho, também quando usados com o verbo ter, confesso-me surpreendido. Passou a ser norma? E as formas gastado e ganhado são alternativas às simplificadas, quando usadas com o verbo ter, ou já ganharam o estatuto de arcaísmos?
A seguir, virá a aceitação da palavra “empregue”, que já vi num dicionário, e a da palavra “encarregue”, que ainda não vi em nenhum.
Miguel Faria de Bastos — Jurista — Lisboa, Portugal
Do ponto de vista normativo, o uso dos particípios passados gastado e ganhado é correto e faz-se de maneira igual à de outros particípios regulares, isto é, ocorrendo só com o auxiliar ter. Com o auxiliar ser, o particípio passado tem sempre forma curta ou irregular (gasto e ganho).
No entanto, há muito que certos gramáticos vêm assinalando a preferência do uso pelas formas irregulares destes particípios passados, mesmo em associação com o auxiliar ter («tinha gasto/ganho»):
– Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa (1958), observa que ganhado «vai rareando», e gastado, também.
– Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág.440) consideram que pagado foi substituído por pago, e ganhado com gastado tendem a ser substituídos pelas formas irregulares.
– Em obras exclusivamente elaboradas por gramáticos brasileiros, as posições podem não coincidir completamente: E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, págs. 229/230) inclui ganhado, gasto e até mesmo pagado ao lado das formas curtas numa lista de formas participiais duplas, mas deixa indicação de estas formas irregulares poderem usar-se tanto na passiva como nos tempos compostos. Maria Helena de Moura Neves (Guia de Uso do Português, 2003), procurando conciliar a tradição normativa com a observação do uso por meio de corpora, apresenta ganhado e gastado como formas pouco usadas.
– Na Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian (vol. II, 2013, p. 1490) considera-se que Cunha e Cintra (1984) são demasiado taxativos sobre o uso de pagado, ganhado e gastado, porque, apesar de haver alguma preferência pelos particípios curtos nos tempos compostos, há falantes que veem como correta a ocorrência de particípios regulares nesses contextos (a perspetiva da GP apoia-se nos juízos dos falantes, não sendo porém coincidente com a gramática prescritiva, porque esta se fundamenta apenas no uso dos bons autores para definir regras e critérios).
Refira-se que uma consulta do Corpus de Português (Mark Davies e Michael Ferreira) confirma o escasso uso de ganhado e gastado em textos do séc. XX.
Em suma, os particípios regulares aqui referidos são considerados corretos entre os gramáticos com preocupações normativas, mas alguns entre estes não deixam de frisar que se trata de formas pouco usadas. Seja como for, em contexto escolar, por exemplo, numa situação de exame, nenhuma destas formas estaria errada: «tinha ganhado»/«tinhas ganho», «tinha gastado»/«tinha gasto».
Finalmente, apesar de os mais puristas os considerarem errados*, a verdade é que o particípio passado empregue ocorre na descrição gramatical há já algum tempo; por exemplo, Bechara (2002) diz que é forma recente, característica do português de Portugal). E mesmo encarregue, constantemente condenado pela norma mais conservador**, também já é mencionado pelo Dicionário Houaiss, desde a 1.ª edição, de 2001, mais uma vez, como forma usada em Portugal.
* Cf. Porquê encarregado, e não "encarregue"?
** Encarregue não é aceite, porque o particípio passado de carregar, verbo donde deriva encarregar, é carregado, e não *"carregue". A forma em causa, de origem popular, terá sido motivada pela analogia com entregue, particípio passado irregular de entregar, mas não são de excluir razões eufónicas e semânticas para o pouco apreço de encarregue entre os mais ciosos da elegância na expressão: com efeito, encarregue evoca carregue, 3.ª pessoa do singular do presente do conjuntivo do verbo carregar, que ocorre em expressões ofensivas como«(que vá para) o diabo que o/a carregue»; a forma não seria, portanto, adequada a um discurso isento de conotações vulgares (assinale-se que estas considerações constituem mera suposição, não encontrando apoio nas fontes consultadas).
Carlos Rocha — 24 de janeiro de 2014