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Existe relação histórico-linguística entre o verbo "haver" [existir] e os casos ergativo e absolutivo?

X existe. X há. Existe X. Há X.

As quatro são expressões intercambiáveis. X com o verbo haver se comporta como objeto quando poderia ser sujeito, pois 'haver' é impessoal em vez de intransitivo; ou seja, se 'haver' fosse intransitivo (por qualquer motivo), 'X' seria sujeito em vez de objeto.

No ergativo-absolutivo (casos indo-europeus), o argumento (sujeito) de um verbo intransitivo se comporta como objeto de um transitivo. O caso ergativo é utilizado para agentes de verbos transitivos, e o absolutivo para sujeitos de intransitivos e objetos de transitivos.

Portanto, o objeto de 'haver', podendo possivelmente ser sujeito em uma hipótese em que 'haver' é intransitivo, resguarda alguma relação com como o caso absolutivo relaciona sujeitos de intransitivos e objetos de transitivos?

Detalhes:

  1. As línguas osco-úmbricas possuem casos morfológicos assim como latim (porém não descubri quais são esses casos), e um cognato para o habeo — origem de haver.
  2. Habeo aparenta não dispor da regência para existir, o que pode implicar alguma alteração na palavra até concluir sua versão no ibero-ocidental.
  3. Haver [existir] existe apenas em castelhano, português e galego. Em catalão, a tradução se faz "Hi [pronome] ha [verbo] X."; em italiano, "C'è [lá é] X.", igual ao inglês; em francês, "Il [ele] y [lá] a [tem] X."; em romeno "Există X.".

P.S.: ponderei postar em Linguistics, porém por ser um site em inglês julguei a pergunta específica demais e decidi postar aqui. Acredito que ficarei sem resposta e terei de contatar um linguista; nesse caso, alguém teria uma recomendação?

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  • 1
    Se de fato ninguém responder aqui, talvez no ciberdúvidas você possa ter mais sorte. E talvez no blog Diário de um Linguista possam te responder. Boa sorte.
    – stafusa
    Jul 20, 2018 at 7:52
  • (Uau, que boa pergunta! Das difíceis... : ) William, "X há" é válido no geral? Só consigo pensar em exemplos que precisam do contexto de uma pergunta... podias-me dar um exemplo?
    – ANeves
    Jul 20, 2018 at 10:45
  • @ANeves Soa estranho mas não conheço regra gramatical que invalide essa construção. De fato, mais comum em respostas. — Há esperança? — Esperança há!
    – user2786
    Jul 20, 2018 at 11:10
  • Existe algum caso no qual haver ou existir não são intransitivos??
    – Lambie
    Jul 22, 2018 at 23:16
  • @Lambie 'Haver' nunca é intransitivo, não existe 'Ele há'. Haver pode ser impessoal (sem sujeito) ("Há [verbo] cavalos [objeto direto] no parque [adjunto adverbial de lugar]"), ou transitivo (exemplo: "Eu hei de dormir mais cedo hoje"). Existir todavia é sempre intransitivo.
    – user2786
    Jul 23, 2018 at 0:24

2 Answers 2

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Há línguas, como o latim (e, até onde eu saiba, todas as línguas indo-europeias), que têm um sistema de casos nominativo-acusativo. E há línguas, como o basco, que têm um sistema de casos ergativo-absolutivo (e há ainda línguas, como se pode ver pela tese que a @Maria Isabel Berrido Marchese indicou, que usam sistemas diferentes para cada tempo verbal). Sendo uma língua nominativo-acusativa para todos os tempos verbais, o Latim não tem caso ergativo nem caso absolutivo. Como o português é derivado do latim, o pouco que resta do nosso sistema de casos deriva do latim, e é, até onde ainda é reconhecível, do tipo acusativo-nominativo, não do tipo ergativo-absolutivo.


Qual a diferença entre os dois sistemas?

No sistema nominativo-acusativo, o caso nominativo é o caso do sujeito de todos os verbos, tanto transitivos quanto intransitivos:

Eu abracei o João.

Eu chorei.

E o acusativo é o caso dos objetos diretos dos verbos transitivos (os intransitivos, naturalmente, não têm objeto):

O João me abraçou.

Nas línguas ergativo-absolutivas, o sujeito dos verbos transitivos é o ergativo, e o absolutivo é usado para os objetos dos verbos transitivos e para o sujeito dos intransitivos. Se o português fosse herdeiro de uma língua ergativo-absolutiva, o nosso uso seria assim:

Eu abracei o João.

Me chorei.


No caso dos verbos "haver" e "existir", porém, o que ocorre é um pouco diferente.

O verbo "existir" é um verbo intransitivo, como muitos outros. Ele admite um sujeito, e flexiona de acordo com ele:

Existem muitas estrelas.

Existe uma esperança.

Ele tem também uma característica menos comum, que é a de mais frequentemente vir antes do sujeito quando este é um substantivo comum (embora com sujeitos pronominais, ou nomes próprios, se comporte de forma mais ortodoxa):

Existe uma falha na filosofia de Aristóteles.

Eu existo, tu existes, ele existe.

Maria Clara existe, João Pedro existe, Deus existe.

De qualquer forma, o caso que ele exige dos seus sujeitos é o mesmo caso que os verbos transitivos exigem dos seus - é portanto um nominativo, e não um ergativo.

Já o verbo "haver" (no sentido de "existir"; como verbo auxiliar, ou no sentido já arcaizante de "ter" ele é mais convencional) é uma coisa bastante rara em português: um verbo "impessoal", isto é, um verbo que, ao contrário dos intransitivos, admite objeto direto, mas não admite sujeito:

Há uma esperança.

Há muitas estrelas. (E não "hão muitas estrelas", porque as estrelas não são sujeito aqui.)

Infelizmente, na língua portuguesa só os pronomes têm caso, e o verbo "haver", no sentido de "existir", geralmente não admite pronomes como objeto, de forma que é difícil saber qual caso ele exige dos seus objetos:

?Há eu.

?Há tu.

*Há-me.

*Há-te.

(Talvez as duas primeiras construções sejam possíveis como respostas a uma pergunta do tipo "há alguém que...?), o que apontaria para outra anormalidade, um objeto que usa o caso do sujeito, mas não flexiona o verbo:

Há alguém aqui que fale sânscrito fluentemente?

-?Há eu.

(Com certeza esse é o caso de "ter" quando tem sentido de "existir": "Tem alguém que...? - Tem eu". Mas acredito que mesmo assim só seja admissível nos registros coloquial e popular - e aí há uma certa incompatibilidade entre esses registros e o uso de "haver" no sentido de "existir"...)

Por outro lado, segundo o @Artefacto, "há-o" e suas flexões, assim como pelo menos "as há" são construções aceitáveis em PT-PT. Sendo esse o caso, reforça-se o argumento: o verbo haver comporta-se como um verbo transitivo, admite um objeto, e o caso desse objeto é o acusativo. E o seu complemento é um objeto, e não um sujeito, por que não flexiona o verbo, que se mantém, "impessoalmente", sempre na terceira pessoa do singular.

Agora, talvez se possa argumentar que o verbo "haver" está perdendo sua "impersonalidade" e os seus objetos estão sendo reinterpretados como sujeitos; construções como

*Haverão ocasiões de conflito; para isso servem os órgão judicantes.

*Haviam dias em que tudo parecia perdido.

que são formalmente proibidas pela gramática normativa, vêm se tornando comuns no português coloquial brasileiro - e, às vezes, insinuam-se até mesmo em textos que se propõem a seguir a norma padrão. Se isso se generaliza e se torna aceitável no futuro, aí sim teremos uma situação que pode guardar alguma semelhança com o sistema ergativo-absolutivo: um verbo intransitivo, que tem um complemento que se comporta como sujeito (fazendo o verbo flexionar), mas que exige desse complemento o "caso oblíquo".

O problema é que cada um desses fenômenos abarca diferentes manifestações do verbo. A flexão do complemento de acordo com o verbo se dá exclusivamente com complementos não-pronominais, e quando o complemento é pronominal e podemos assim aferir que o caso exigido pelo verbo é oblíquo, a flexão nunca ocorre (pelo menos pelo que entendi dos comentários do @Artefacto; é "há-os" e "as há", nunca *"hão-nos" ou *"as hão". Não por acaso, creio, cada uma dessas construções ocorre de um lado diferente do oceano: *"haverão ocasiões" é inovação brasileira, "os há" é (inovação? arcaísmo? eruditismo?) lusitano.


Para encurtar conversa, num sistema ergativo-absolutivo, o verbo "existir", sendo intransitivo, exigiria do seu sujeito o mesmo caso dos objetos dos verbos transitivos diretos - o "caso absolutivo":

Existo-me.

Existes-te.

Existe-lhe.

O que, evidentemente, não é o caso.

E o verbo haver, não sendo nem transitivo nem intransitivo, mas essa anomalia que é um "verbo impessoal", continuaria a ter um objeto direto, que, suponho, demandaria o "caso absolutivo", e não o "ergativo", que é reservado ao sujeito de verbos transitivos:

Há-me.

Há-te.

O que, não só evidente, mas também felizmente, não é o caso.


Portanto, a questão que você levanta não parece relacionada a uma possível sobrevivência de um sistema ergativo-absolutivo (que teria de ser uma sobrevivência de uma língua anterior ao latim: proto-itálico, ou proto-indo-europeu). Mas se esse fosse o caso, então o latim habere deveria poder ser utilizado no sentido de "existir", o que você diz não ocorrer. E esse tipo de construção, como você aponta, só existe em português, galego e castelhano, portanto o mais provável é que seja uma inovação introduzida a partir do romance ibérico (o catalão deriva do romance provençal, não do romance ibérico).

E, se é uma inovação, é improvável que vá no sentido do ergativo-absolutivo (a não ser que fosse um empréstimo sintático do basco, o qual, de fato, é uma língua ergativo-absolutiva). Muito mais plausivelmente, vem de alguma construção similar à francesa ("ele há muitas estrelas"), com queda do pronome (que é característica do romance ibérico; "sei falar francês" versus "je sais parler français").

Aliás, em português mesmo, é assim que interpretamos construções como

Me confundi (ou, "confundi-me").

Entendemos isso como "Eu me confundi", com sujeito "oculto", não como um caso anômalo em que a forma oblíqua "me" funciona como sujeito.

Assim, a resposta para a sua pergunta é,

Não, não há relação histórico-linguística entre o uso do verbo "haver" no sentido de "existir" e o sistema ergativo-absolutivo de casos".


(disclaimer: o "eu" de uma das frases acima com certeza não sou eu. Eu não falo sânscrito fluentemente - e nem não-fluentemente...)

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  • De facto, não se pode dizer há-me, mas pode dizer-se há-o. Por exemplo: não acredito em bruxas mas que as há, há / eu non creo nas meigas, mais habelas hainas / no creo en brujas, pero que las hay, las hay. E o sujeito expletivo ele também é usado com haver nalguns dialetos.
    – Artefacto
    Mar 20, 2019 at 2:22
  • Já agora, não tenho a certeza sobre a aceitabilidade de há-me a mim, mas em todo o caso parece-me muito melhor que há eu.
    – Artefacto
    Mar 20, 2019 at 4:01
  • @Artefacto, acho que a regra geral é que, no padrão, "haver", no sentido de existir, não aceita objetos pronominais. "Há eu" talvez seja marginalmente aceitável no coloquial brasileiro, embora não no coloquial europeu. "Há-me a mim" é inaceitável em PT-BR, qualquer que seja o registro; em PT-PT, podes explicar melhor do que eu. E quanto "há-as" ou "as há", faço como com as bruxas: ainda que existam, não acredito nelas. Acho que "as há" pode ser talvez aceito no registro literário em PT-BR, mas a tradução usual é "que elas existem, existem". "Há-as", nem isso. Mar 20, 2019 at 13:49
  • Em Portugal, há-o e variantes são relativamente comuns. Por exemplo, procurando apenas "há-as" (sem considerar próclise e outro género/número do pronome) devolve 40 ocurrências no CETEMPúblico. De qualquer forma, a pergunta menciona tb galego e castelhano.
    – Artefacto
    Mar 20, 2019 at 15:15
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As línguas osco-úmbricas possuem casos morfológicos assim como latim (porém não descubri quais são esses casos), e um cognato para o habeo — origem de haver.

Os únicos documentos sobre a língua úmbria que descobri na internet são: Umbrian language words & meanings e A grammar of Oscan and Umbrian : with a collection of inscriptions and a glossary

O primeiro é uma simples lista de palavras, com as respectivas traduções e/ou cognatos em latim e indo-europeu, às vezes com indicações como "acc.", "loc.", "abl", que parecem ser abreviaturas dos nomes dos casos. Se assim é, então tudo indica que o úmbrio tinha um sistema de casos do tipo nominativo-acusativo, como o latim. Achei as abreviaturas que listo abaixo, na ordem em que aparecem, com a interpretação que me parece óbvia:

abl.pl. (ablativo plural)

acc.pl. (acusativo plural)

loc.sg. (locativo singular)

acc.sg. (acusativo singular)

dat.sg. (dativo singular)

gen.pl. (genitivo plural)

gen. (genitivo)

dat. (dativo)

abl. (ablativo)

Assim, estariam presentes aí quatro dos seis casos do latim, ablativo, acusativo, dativo e genitivo - faltando o vocativo e o nominativo. Há muitos substantivos dados sem indicação de caso; me pergunto se esses não estarão no nominativo.

E há pelo menos um caso que já não existia no latim clássico, embora provavelmente existisse no latim arcaico, o locativo.

O outro documento é uma gramática completa (na medida do possível para uma língua da qual resta um corpus diminuto). Ele basicamente confirma o que já foi deduzido do outro: um sistema de seis casos, sendo os seis do latim menos o vocativo e mais o locativo (embora o uso dos casos não seja exatamente igual ao do latim).

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