Há línguas, como o latim (e, até onde eu saiba, todas as línguas indo-europeias), que têm um sistema de casos nominativo-acusativo. E há línguas, como o basco, que têm um sistema de casos ergativo-absolutivo (e há ainda línguas, como se pode ver pela tese que a @Maria Isabel Berrido Marchese indicou, que usam sistemas diferentes para cada tempo verbal). Sendo uma língua nominativo-acusativa para todos os tempos verbais, o Latim não tem caso ergativo nem caso absolutivo. Como o português é derivado do latim, o pouco que resta do nosso sistema de casos deriva do latim, e é, até onde ainda é reconhecível, do tipo acusativo-nominativo, não do tipo ergativo-absolutivo.
Qual a diferença entre os dois sistemas?
No sistema nominativo-acusativo, o caso nominativo é o caso do sujeito de todos os verbos, tanto transitivos quanto intransitivos:
Eu abracei o João.
Eu chorei.
E o acusativo é o caso dos objetos diretos dos verbos transitivos (os intransitivos, naturalmente, não têm objeto):
O João me abraçou.
Nas línguas ergativo-absolutivas, o sujeito dos verbos transitivos é o ergativo, e o absolutivo é usado para os objetos dos verbos transitivos e para o sujeito dos intransitivos. Se o português fosse herdeiro de uma língua ergativo-absolutiva, o nosso uso seria assim:
Eu abracei o João.
Me chorei.
No caso dos verbos "haver" e "existir", porém, o que ocorre é um pouco diferente.
O verbo "existir" é um verbo intransitivo, como muitos outros. Ele admite um sujeito, e flexiona de acordo com ele:
Existem muitas estrelas.
Existe uma esperança.
Ele tem também uma característica menos comum, que é a de mais frequentemente vir antes do sujeito quando este é um substantivo comum (embora com sujeitos pronominais, ou nomes próprios, se comporte de forma mais ortodoxa):
Existe uma falha na filosofia de Aristóteles.
Eu existo, tu existes, ele existe.
Maria Clara existe, João Pedro existe, Deus existe.
De qualquer forma, o caso que ele exige dos seus sujeitos é o mesmo caso que os verbos transitivos exigem dos seus - é portanto um nominativo, e não um ergativo.
Já o verbo "haver" (no sentido de "existir"; como verbo auxiliar, ou no sentido já arcaizante de "ter" ele é mais convencional) é uma coisa bastante rara em português: um verbo "impessoal", isto é, um verbo que, ao contrário dos intransitivos, admite objeto direto, mas não admite sujeito:
Há uma esperança.
Há muitas estrelas. (E não "hão muitas estrelas", porque as estrelas não são sujeito aqui.)
Infelizmente, na língua portuguesa só os pronomes têm caso, e o verbo "haver", no sentido de "existir", geralmente não admite pronomes como objeto, de forma que é difícil saber qual caso ele exige dos seus objetos:
?Há eu.
?Há tu.
*Há-me.
*Há-te.
(Talvez as duas primeiras construções sejam possíveis como respostas a uma pergunta do tipo "há alguém que...?), o que apontaria para outra anormalidade, um objeto que usa o caso do sujeito, mas não flexiona o verbo:
Há alguém aqui que fale sânscrito fluentemente?
-?Há eu.
(Com certeza esse é o caso de "ter" quando tem sentido de "existir": "Tem alguém que...? - Tem eu". Mas acredito que mesmo assim só seja admissível nos registros coloquial e popular - e aí há uma certa incompatibilidade entre esses registros e o uso de "haver" no sentido de "existir"...)
Por outro lado, segundo o @Artefacto, "há-o" e suas flexões, assim como pelo menos "as há" são construções aceitáveis em PT-PT. Sendo esse o caso, reforça-se o argumento: o verbo haver comporta-se como um verbo transitivo, admite um objeto, e o caso desse objeto é o acusativo. E o seu complemento é um objeto, e não um sujeito, por que não flexiona o verbo, que se mantém, "impessoalmente", sempre na terceira pessoa do singular.
Agora, talvez se possa argumentar que o verbo "haver" está perdendo sua "impersonalidade" e os seus objetos estão sendo reinterpretados como sujeitos; construções como
*Haverão ocasiões de conflito; para isso servem os órgão judicantes.
*Haviam dias em que tudo parecia perdido.
que são formalmente proibidas pela gramática normativa, vêm se tornando comuns no português coloquial brasileiro - e, às vezes, insinuam-se até mesmo em textos que se propõem a seguir a norma padrão. Se isso se generaliza e se torna aceitável no futuro, aí sim teremos uma situação que pode guardar alguma semelhança com o sistema ergativo-absolutivo: um verbo intransitivo, que tem um complemento que se comporta como sujeito (fazendo o verbo flexionar), mas que exige desse complemento o "caso oblíquo".
O problema é que cada um desses fenômenos abarca diferentes manifestações do verbo. A flexão do complemento de acordo com o verbo se dá exclusivamente com complementos não-pronominais, e quando o complemento é pronominal e podemos assim aferir que o caso exigido pelo verbo é oblíquo, a flexão nunca ocorre (pelo menos pelo que entendi dos comentários do @Artefacto; é "há-os" e "as há", nunca *"hão-nos" ou *"as hão". Não por acaso, creio, cada uma dessas construções ocorre de um lado diferente do oceano: *"haverão ocasiões" é inovação brasileira, "os há" é (inovação? arcaísmo? eruditismo?) lusitano.
Para encurtar conversa, num sistema ergativo-absolutivo, o verbo "existir", sendo intransitivo, exigiria do seu sujeito o mesmo caso dos objetos dos verbos transitivos diretos - o "caso absolutivo":
Existo-me.
Existes-te.
Existe-lhe.
O que, evidentemente, não é o caso.
E o verbo haver, não sendo nem transitivo nem intransitivo, mas essa anomalia que é um "verbo impessoal", continuaria a ter um objeto direto, que, suponho, demandaria o "caso absolutivo", e não o "ergativo", que é reservado ao sujeito de verbos transitivos:
Há-me.
Há-te.
O que, não só evidente, mas também felizmente, não é o caso.
Portanto, a questão que você levanta não parece relacionada a uma possível sobrevivência de um sistema ergativo-absolutivo (que teria de ser uma sobrevivência de uma língua anterior ao latim: proto-itálico, ou proto-indo-europeu). Mas se esse fosse o caso, então o latim habere deveria poder ser utilizado no sentido de "existir", o que você diz não ocorrer. E esse tipo de construção, como você aponta, só existe em português, galego e castelhano, portanto o mais provável é que seja uma inovação introduzida a partir do romance ibérico (o catalão deriva do romance provençal, não do romance ibérico).
E, se é uma inovação, é improvável que vá no sentido do ergativo-absolutivo (a não ser que fosse um empréstimo sintático do basco, o qual, de fato, é uma língua ergativo-absolutiva). Muito mais plausivelmente, vem de alguma construção similar à francesa ("ele há muitas estrelas"), com queda do pronome (que é característica do romance ibérico; "sei falar francês" versus "je sais parler français").
Aliás, em português mesmo, é assim que interpretamos construções como
Me confundi (ou, "confundi-me").
Entendemos isso como "Eu me confundi", com sujeito "oculto", não como um caso anômalo em que a forma oblíqua "me" funciona como sujeito.
Assim, a resposta para a sua pergunta é,
Não, não há relação histórico-linguística entre o uso do verbo "haver" no sentido de "existir" e o sistema ergativo-absolutivo de casos".
(disclaimer: o "eu" de uma das frases acima com certeza não sou eu. Eu não falo sânscrito fluentemente - e nem não-fluentemente...)