Sim, alfacinha pode ser homem, mulher ou criança; e pode ainda ser usado como adjetivo equivalente a ‘lisboeta’, como em “clube alfacinha” ou “a câmara alfacinha”. É usado por toda a gente, incluindo os próprios lisboetas, e não é nada pejorativo. Quando muito será o contrário. Um lisboeta pode autointitular-se “alfacinha” com certa afeição e orgulho. Basta a ver a quantidade de gente a afirmar “sou alfacinha de gema”, como neste post (negrito meu em todas as citações):
Sou alfacinha de gema, filha de lisboetas e nascida em plena cidade, por isso, suspeita pela minha paixão por Ela.
[…]
Sejam bem vindos ao meu país, à minha cidade, ao meu lar, à minha LISBOA!
Tal como o ANeves já disse no comentário acima, também a mim não me parece que seja muito usado; “lisboeta” parece-me mais. É talvez especialmente usado para exprimir mais emoção, como no exemplo acima, e também na imprensa para variar o vocabulário. Por exemplo neste artigo em O Mirante (2017), o Sport Lisboa e Benfica (o Benfica), às tantas é referido por “o clube alfacinha”. E este artigo no Público (2017), possivelmente para não repetir outra vez “Câmara Municipal de Lisboa”, refere-se-lhe por “autarquia alfacinha”.
Quanto à origem da designação, o que eu posso dizer com segurança é que é antiga. Já vem neste Novo Diccionario de 1817, que classifica o termo como “baixo”:
Alfacinha […] T. baixo f. m. O que é nascido em Lisboa.
Mas há mais. Possivelmente já no século XVII e certamente no XVIII, existia o anexim “anda o diabo em casa do alfacinha”. Este alfacinha parece não ter de ser lisboeta, e num caso não é mesmo. Portanto ou alfacinha começou por designar um lisboeta, formou-se depois o anexim, que depois se autonomizou e passou a ser usado mesmo a propósito de não lisboetas; ou alfacinha designou primeiro uma pessoa, talvez um certo tipo de pessoa, formou-se o anexim, e mais tarde alfacinha evoluiu de ‘certo tipo de pessoa’ para ‘lisboeta’.
Pelos vistos isto já se dizia no século XVII. Aparece “ia o diabo em casa do alfacinha” em Feira dos Anexins, atribuído a Francisco Manuel de Mello (1608-66), mas publicado postumamente em 1875. Para quem seja desconfiado, temos de certeza numa comédia representada em Lisboa em 1736:
Ay que parece, que vay o diabo em casa do Alfacinha !
António José da Silva, “Amphitryaõ ou Jupiter e Alcmena” em coleção de peças, Lisboa 1747, p. 473.
Neste exemplo, o reboliço é na casa do general grego (tebano) Anfitrião. Portanto o anexim não era só para lisboetas. O anexim aparece noutras obras ao longo do século XVIII e XIX, e esta passagem de 1824 indica que era comum:
[…] se a sorte lhe destina por esposo algum Portugal velho daquelles, que não soffrem mulher de Portugal novo [frívola que não sabe tomar conta de uma casa], todos os dias anda (como lá dizem) o diabo em casa do alfacinha.
José Daniel Rodrigues da Costa, Hospital do Mundo, Lisboa, 1824, p. 12.
Agora o porquê de “alfacinha”. Desde princípios do século XIX que se diz que é por causa de os lisboetas “comerem muitas alfaces” (dicionário de Francisco Solano Constâncio, 1836) ou “por gostarem muito de alface” (dicionário de Moraes Silva, 1858), e afirmações semelhantes em obras avulsas.
Não estou especialmente convencido que os lisboetas tenham tido em qualquer tempo um apetite assim descomunalmente invulgar por alfaces, mas quem sou eu. Já em 1874 um autor exprimiu igualmente algum ceticismo.
Também o Ciberdúvidas (2003) consultou o Gabinete de Estudos Olisiponenses, e a resposta que obteve foi a “origem da designação perde-se”, mas lá dizem “que há quem explique” com o cultivo de viçosíssimas alfaces já na Lisboa antiga e que há “também quem sustente” que durante uns cercos os lisboetas se sustentaram com alfaces.
Entretanto encontrei o blog alvorsilves (2014) que propões uma explicação radicalmente diferente. Dizem eles que alfacinha designava uns punhos ou gola de camisa em forma de folha de alface muito espalhafatosos, muito em voga ao tempo de Filipe II de Espanha, I de Portugal, que residiu em Lisboa alguns anos depois de ser coroado rei de Portugal em 1580. Muitos lisboetas finos teriam adotado a moda, e viria daí a alcunha alfacinha
Este tipo de punho existiu mesmo e em espanhol chama-se lechuguilla (Real Academia Española), que é ‘alfacinha’ em português. Mas eu não encontrei alfacinha com este significado em nenhum dicionário de língua portuguesa, e segundo a Wikipédia o nome em português era gorgueira, rufo ou o próprio castelhano leguchilla. Eles citam um dicionário, mas é de Espanhol-Português (1864), que no verbete lechuguilla dá como equivalente alfacinha e descreve o punho. Não seria no entanto impossível o nome “alfacinha” ter existido para esses assessórios, o pessoal esquecer-se disso, e o termo persistir na boca do povo como designação algo zombeteira para os finórios lisboetas. Com o passar do tempo a designação poderia passar a designar todos os lisboetas e ser aceite com carinho e orgulho, como acontece muitas vezes com designações inicialmente depreciativas.