Correção e aceitação
A língua padrão aceita varias duplas de preposições seguidas. No dicionário Houaiss e no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa encontramos para com (’com relação a’), por entre (’pelo meio de’) e até a (esta é especial, de regra em Portugal mas não no Brasil; para os interessados, reproduzo no fim a explicação muito completa do Houaiss).
Estes pares não são os únicos. Evanildo Bechara explica na Moderna Gramática Portuguesa:
Acúmulo de preposições — Não raro duas preposições se juntam para dar maior efeito expressivo às ideias, guardando cada uma seu sentido primitivo:
Andou por sobre o mar.
Estes acúmulos de preposições não constituem uma locução prepositiva porque valem por duas preposições distintas [as locuções prepositivas, como até a, depois de, graças a, valem por uma única preposição]. Combinam-se com maior frequência as preposições: de, para e por com entre, sob e sobre.
“De uma vez olhou por entre duas portadas mal fechadas para o interior de outra sala…” [Camilo de Castelo Branco]
“Os deputados oposicionistas conjuravam-no a não levantar mão de sobre os projetos depredadores” [Camilo de Castelo Branco]
A Gramática do Português da Gulbenkian (Lisboa 2013, tomo II, p. 1505; explicação reproduzida neste artigo do Ciberduúvidas) explica que nestes casos temos um sintagma preposicional dentro de outro sintagma preposicional. Por exemplo, em ele olhou por um canudo temos o sintagma preposicional por um canudo, composto pela preposição por e pelo seu complemento um canudo. Ora, uma preposição pode ter por complemento outro sintagma preposicional: em ver de ele olhar por um canudo, pode olhar por [entre as portadas mal fechadas], em que por e entre mantêm os seus significados primitivos.
Isto dá-nos possibilidades de combinar várias preposições. Por exemplo, a chegada do avião pode estar prevista para [as cinco da tarde]; mas também pode ser que
A chegada do avião está prevista para entre as cinco e as seis da tarde.
Portanto é verdade, como diz uma professora referida na resposta do Valdeir, que a função da preposição é ligar dois termos. Mas nada impede que, em alguns casos, o termo à direita comece ele mesmo com outra preposição.
É considerado pedante na língua falada informal?
A meu ver, depende. Parece-me que os últimos dois exemplos acima — olhou por entre as portadas mal fechadas e prevista para entre as seis e as cinco — são lógicos, relativamente corriqueiros, e não destoariam numa conversa informal.
Quanto aos teus exemplos, se a junção de duas preposições visa, nas palavras do Evanildo Bechara, “maior efeito expressivo”, eu não vejo qual seja o efeito expressivo em “a bola passou por sobre a rede” ou “voando sobre a torre da igreja”; tal como tu, eu diria sobre ou por cima de. Mas o por sobre tem tradições literárias, e alguns (não todos) dos exemplos citados pelo Cláudio Moreno já me parecem mais convincentes. Gosto de “o som mole dos chinelos que se aproximam ‘por sobre o tapete’”. A preposição por dá a ideia do movimento sobre o tapete; fá-lo de forma mais sugestiva do que se disséssemos simplesmente chinelos que se aproximavam sobre o tapete. Pergunto-me se alguns por sobre, como na bola passando por sobre a rede, não é simplesmente o desejo de variar por variar ou de “falar bonito” — temos um comentador de futebol em Portugal que em vez de dizer que um jogador é grande, diz que ele tem dados antropométricos notáveis!
Para com. Nos teus exemplos, o para com poderia perfeitamente ser substituído por pelo ou pelos, mas também não me choca. Noutros casos, porém, para com parece-me talvez a melhor opção:
Gostei da tua atitude para com a Joana
Aqui, pela não serviria. Atitude com a Joana talvez escape, mas não transmite tão claramente a ideia que a Joana é o alvo da atitude. Depois teríamos atitude em relação à Joana, que não melhora em concisão e seria talvez um pouco mais vago.
É claro que existindo para com para estas situações, em que é mais adequado que as alternativas, ele fica também disponível para outras situações em que poderá não trazer grande vantagem, como nos teu exemplos. A questão é que este para com já cá anda há séculos. O Camões já o usou, numa carta a uma amigo; não foi nenhum artifício para cumprir a métrica ou a rima: “Nenhuma cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem a mor bonança, do que ela [a morte]” (Obras Completas de Luís de Camões). Basta uma busca no Google Boks para ver que este para com é depois muito usado ao longo dos séculos. E o uso é o tribunal de última instância em matéria de correção.
Até a
Até a é uma verdadeira locução prepositiva, porque as duas preposições valem por uma só, em vez de manterem cada uma os seus sentidos primitivos. Ou melhor, até mantém, e a serve apenas de ligação. O Houaiss explica:
até […] GRAMÁTICA/USO a) como advérbio, Portugal e Brasil (no sentido de ’inclusive’) empregam-no do mesmo modo (até tu, Brutus?, gosto até de morangos ácidos) b) como preposição, em Portugal, usa-se associado à preposição a (ir até ao parque e não ir até o parque; caminhar até à igreja e não caminhar até a igreja), enquanto no Brasil é indiferentemente correto associá-lo ou não à outra preposição, embora por vezes se imponha tal escolha para evitar a ambiguidade ente os uso da preposição e o uso do advérbio (numa frase sem a preposição a do tipo estudei até a quinta lição, o até pode ser entendido, no Brasil, como preposição ’até ao limite da quinta lição’ ou como advérbio ’até mesmo a quinta lição;* historicamente, até ao sXVII, usou-se na língua apenas até; nesse mesmo século começou a surgir até a, com o artigo feminino (até à, até às), e posteriormente com o artigo masculino (até ao, até aos); grandes escritores dos sXIX e XX alternaram o emprego do até preposicionado com o até sem preposição, por vezes na mesma obra (Machado de Assis, por exemplo)
Note-se que a preposição a liga até ao artigo: vou até ao Brasil, até à China mas, como Portugal não leva artigo, simplesmente até Portugal. Do mesmo modo, espero até ao meio-dia mas espero até sábado/até ele chegar.