O pronome objeto clítico (ou pronome oblíquo átono) da terceira pessoa é alomorfo (isto é, é um morfema com várias representações fonéticas) por dois motivos:
- Porque esses pronomes são clíticos;
- E porque a língua portuguesa passou por certas alterações fonéticas durante sua evolução.
Clíticos
Um clítico é uma palavra que é morfologicamente independente, porém foneticamente ligada a outra palavra. Por exemplo, a expressão "amá-la" contém, morfologicamente, duas palavras (amar e la), mas contém foneticamente apenas uma ("amála").
Isso é notável em outras línguas de origem latina, onde o verbo e o pronome objeto são de fato escritos como uma única palavra sem hifenização (sem serem separados por hífen). Essa mesma expressão "amá-la", em espanhol e italiano é "amarla".
Lenição intervocálica
A lenição intervocálica foi uma alteração fonética que ocorreu nos contextos /ala, ela, elo .../ ou qualquer combinação de duas vogais separadas por "L" (exceto quando essas vogais forem ao mesmo tempo /u/
ou /i/
).
Nesses contextos, a consoante /l/
foi eliminada, e as duas vogais, que antes eram separadas pela consoante, passaram a ser unidas. Veja alguns exemplos (do latim vulgar ibérico para o português antigo e para o português moderno):
- "palo" > "pao" > "pau"
- "polo" > "poo" > "pó"
- "volar" > "voar"
Essa lenição atingiu as palavras formadas por verbo+pronome clítico (pois, como disse, verbos e pronomes clíticos formam, fonologicamente, uma palavra só).
Veja, por exemplo, a expressão "ame-a" (em espanhol "ámela"), que, no latim vulgar tardio, era, assim como no espanhol, "ámela" (ame+la). Devido à lenição intervocálica, o "ámela" perdeu o "L" e virou "ámea" (ou "ame-a", já que a ortografia moderna separa pronomes clíticos por hífen).
Assimilação lateral e degeminação
A assimilação lateral foi uma alteração fonética que ocorreu em /arla, esla, izlo, .../ e qualquer combinação de duas vogais separadas por "RL, SL, ZL".
Nesses contextos, o som /rl/
transformou-se em /ll/
devido à assimilação, ou seja, o "R" assimilou-se em "L". Não conheço muitos exemplos de assimilação, mas um bem famoso é o da palavra latina vulgar "perlo", formado pela união da preposição "per" e do pronome "lo", que tornou-se a palavra "pello" por assimilação.
A consoante geminada (ou dupla) /ll/
não sofreu lenição (diferente da forma simples não geminada /l/
, que tratei na seção anterior), porém foi degeminada (isto é, os dois "L"-s combinaram-se num só /l/
). Veja alguns exemplos:
- "elle" > "ele"
- "collo" > "colo"
- "bolla" > "bola"
- "bella" > "bela"
- "perla" > "pella" > "pela" (assimilação seguida de degeminação
/rl > ll > l/
No caso dos pronomes clíticos aconteceu a assimilação seguida de degeminação. Por exemplo, a expressão "amá-la" (em espanhol "amarla"), que, no latim vulgar, era "amarla" (amar+la). Devido à assimilação, o "amárla" virou "amálla", que virou "amála" pela degeminação. E como a ortografia portuguesa separa pronomes clíticos por hífen, hoje temos "amá-la".
O caso nasal
No caso de flexões verbais terminadas em som nasal, não consegui encontrar fontes fiáveis explicando o caso específico do desenvolvimento de "amenla" para "amem-na". Mas vou deixar aqui minhas opiniões das causas possíveis (editarei essa resposta quando achar algo relevante, mas essas duas opções são bastante plausíveis dado o sistema evolutivo do português):
- Pode ter sido a lenição intervocálica do /-l-/ seguido da fortição do /-n-/.
(ou seja: /amenla > amẽa > amena/
).
- Ou a assimilação de
/-nl-/
em /nn/
seguido da degeminação.
(ou seja: /amenla > amenna > amena/
).
Resumindo
-o(as):
"Ame-la > ame-a" (/'a.me.la > 'a.me.a/
), pela lenição intervocálica. Compare com o espanhol "ámela", que não sofreu lenição.
-lo(as):
"Amar-la > amal-la > amá-la" (/a'mar.la > a'mal.la > a'ma.la/
), pela assimilação do "R" em "L", seguida pela degeminação dessa consoante. Compare com o espanhol e italiano "amarla", que não sofreu assimilação (e, consequentemente, nem degeminação).
-no(as), evolução 1:
"Amen-la > amen-a > amem-na" (/'a.men.la > 'a.mẽ.a > 'a.mẽ.na/
), pela lenição do "L", seguida pela fortição do "N".
Compare com o espanhol "ámenla".
-no(as), evolução 2:
"Amen-la > amen-na > amem-na" (/'a.men.la > 'a.mẽn.na > 'a.mẽ.na/
), pela assimilação do "L" em "N", seguida pela degeminação dessa consoante. Compare com o espanhol "ámenla".
Eu não sei porque a ortografia portuguesa separa o pronome clítico do verbo por hífen, enquanto que na ortografia do espanhol e do italiano isso não ocorre. Não entendo muito da evolução ortográfica (mas creio que essa dúvida valha uma outra pergunta aqui no site).
O livro Portuguese: A linguistic Introduction, que uso como referência, explica a evolução fonética do português, porém apenas cita, sem discutir, o caso do clítico nasal.
Terminologia
Lenição: Alteração fonética em que um som se enfraquece, fazendo com que, dentre outras coisas, consoantes desapareçam ou tornem-se vogais ou características suprafonéticas (como a nasalização).
Fortição: Alteração fonética em que um som se fortalece, fazendo com que, dentre outras coisas, características suprafonéticas (como a nasalização) ou vogais tornem-se consoantes.
Assimilação: Alteração fonética em que um som torna-se parecido ou igual a um som adjacente.
Geminação: Alteração fonética em que uma consoante torna-se geminada, ou dupla/longa. O latim possuía consoantes geminadas, mas o português não possui. Porém há reflexos da geminação latina no português, como em "assa" vs. "asa"; "morro" vs. "moro"; "-ão" vs. "ano" etc.
Degeminação: Alteração fonética em que uma consoante geminada torna-se simples. Todas as consoantes geminadas do latim foram degeminadas no português.
Clítico: Palavra que é morfologicamente independente mas é fonologicamente parte de uma palavra maior, com a qual é pronunciada e sofre as evoluções fonéticas como se fossem uma única palavra.
Alomorfia: Condição em que um morfema possui mais de uma realização fonética. Cada realização é chamada de alomorfo (por exemplo, "-o, -no, -lo" são três alomorfos de um mesmo morfema).