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A palavra uma, na sua evolução a partir do latim una, passou por ũa, frequentemente grafado hũa, forma que aliás sobrevive nalguns falares do Brasil. Ver a resposta a esta pergunta sobre a evolução da palavra. O Camões escrevia hũa. Vejam o excerto abaixo da edição original d’Os Lusíadas (1571), onde se vê também algũas e nenhũa; também se vê lũa, com til, forma que, creio, resulta do latim luna, pelo mesmo processo que ũa de una.

enter image description here Luís de Camões, Os Lusíadas, canto nono, 1571 (BNP).

Portanto o que eu quero saber é quando foi que uma ou, como também se vê no passado, huma, substituíu ũa e hũa. Se as duas formas uma e ũa, com ou sem h, conviveram durante algum tempo, o que não me espantaria, quando é que surgiu uma e huma, quando é se tornam dominantes, e quando é que desaparecem ũa e hũa.

1 Answer 1

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Andei pesquisando gramáticas dos séculos 16 ao 19 em busca de comentários sobre a grafia do artigo "hũa/huma" e sobre sua realização vocálica /ũ(w̃).a/ e consonantal /ũ.ma/. A partir daqui usarei os termos "pronúncia vocálica" e "pronúncia consonantal" para referir às respectivas pronúncias possíveis dessa palavra.

Eis abaixo as citações relevantes que encontrei.

Tomei liberdade para transcrever o texto à ortografia e à pontuação atual, exceto que, para as transcrições ortográficas, marcadas entre ⟨chevrões⟩, mantive a grafia do autor; enquanto que substituí as transcrições fonéticas do autor, por transcrições no Alfabeto Fonético Internacional, marcadas entre /barras/. Tomei liberdade também de inserir alguns parênteses, quando fez-se necessário explicar algo.


A primeira citação é «Orthographia, ou a arte de escrever, e pronunciar com acerto a lingua portugueza. Segunda edição. ¶164—165», pelo trasmontano Madureira Feijó em 1739 (primeira edição em 1734).

Primeira citação

§ Como se há de pronunciar a palavra ⟨huma⟩

¶164 Entre pessoas sábias e doutas se altercou a dúvida (sobre) se esta palavra ⟨huma⟩ se havia de pronunciar ferindo com o ⟨m⟩ o ⟨a⟩, deste modo /u.ma/; ou unindo o ⟨m⟩ ao ⟨hu⟩ e separando o ⟨a⟩, deste modo /ũ(w̃).a/. E como a dúvida passa-se a teima, fui consultado para a decisão, e respondi que, por uso, se pronunciava do primeiro modo; mas que, pelo rigor da arte, se devia pronunciar do segundo por duas razões: a primeira é porque a palavra ⟨huma⟩ compõe-se de ⟨hum⟩ acrescentando a partícula ⟨a⟩, assim como ⟨boma⟩ (feminino de "bom", na época pronunciado como hiato nasal-oral /bõ(w̃).a/, encontra-se também escrito como ⟨bõa⟩ em textos mais antigos), na opinião dos que a pronunciam com ⟨m⟩, compõe-se de ⟨bom⟩, acrescentando a partícula ⟨-a⟩ para o gênero feminino. E se ninguém pronunciaria /bo.ma/ ferindo com o ⟨m⟩ o ⟨a⟩, também não devemos pronunciar /u.ma/ ferindo do mesmo modo. O mesmo se vê na palavra ⟨alguma⟩, derivada de ⟨algum⟩, que melhor se pronuncia /algũ(w̃).a/ do que /algu.ma/.

¶165 A segunda razão, a que não ouvi resposta, é que muitos, ou todos os que doutamente escrevem ⟨hũa⟩ e ⟨algũs⟩ com til por cima do ⟨u⟩, suprindo o m, mas assim é, que o til nunca fere na pronunciação alguma vogal, nem se pode pôr em lugar do ⟨m⟩ nas mais palavras, em que o ⟨m⟩ fere alguma vogal. Logo é certo que nas palavras ⟨huma⟩ e ⟨alguma⟩ o ⟨m⟩ não fere a vogal seguinte, e deve pronunciar-se /ũ(w̃).a, algũ(w̃).a/, ou se escrevam com ⟨m⟩ ou com til.

Já por 1739 se discutia a pronúncia do artigo. O autor refere-se à pronúncia consonantal /u.ma/ como sendo a pronúncia popular pelo uso; enquanto que a pronúncia vocálica /ũ(w̃).a/ é a pronúncia dos "doutos" pelo rigor da arte. Ele compara com a pronúncia de "boa" (na época "bõa") que sofria do mesmo problema: um hiato nasal-oral com ambiguidade na grafia e pronúncia, ambiguidade essa que hoje não mais existe, já que /õ(w̃).a/ deixou de ser um hiato nasal (da mesma forma que "lua" deixou de ser "lũa").


A segunda citação é «Orthographia da Lingua Portugueza ¶290», pelo tipógrafo português Joaquim José Ventura da Silva em 1834:

Segunda citação

§ Lição III. Do Til e seu uso

[...]

¶290. As palavras ⟨huma, alguma, nenhuma⟩ podem-se escrever ⟨hũa, algũa, nenhũa⟩, porque o ⟨m⟩ não fere a vogal ⟨a⟩, por serem estas palavras compostas de ⟨hum, algum, nenhum⟩ acrescentando-lhes a partícula ⟨-a⟩: donde se segue, que o ⟨m⟩ nestas palavras soa com a vogal antecedente, e não com a subsequente, e por isso é que se podem escrever com til porque este nunca fere a vogal.

Esta citação é mais breve, mas dela pode-se deduzir que em 1834, um ano após a publicação da citação anterior, a pronúncia vocálica ainda existia.


A conclusão é que ambas as grafias ⟨hũa⟩ e ⟨huma⟩ coexistiram na língua durante um bom tempo até que a forma arcaica passasse a ser usada por escritores mais conservadores, culminando com seu desuso total.

A medida que eu encontrar novas citações relevantes, editarei esta resposta. Também listarei em anexo os dicionários da época que listavam ambas as formas como possíveis.

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  • 2
    Quando ele diz «que melhor se pronuncia /algũ(w̃).a/ do que /algu.ma/», não me parece que esteja a dizer que a primeira é mais comum, apenas que normativamente é a melhor opção.
    – Artefacto
    Jul 30, 2017 at 9:15
  • 1
    Já agora, na transcrição parece que foste longe demais na supressão das vírgulas. A primeira frase fica agramatical («fica a dúvida se esta palavra...»), pelo menos modernamente, já que o argumento de dúvida tem de estar preposicionado com sobre. Parece que ele usa a vírgula para marcar pausas e essa primeira devia ser substituída por dois pontos ou travessão.
    – Artefacto
    Jul 30, 2017 at 9:35
  • 1
    @Artefacto, me soa normal usar a palavra "dúvida" seguida da conjunção "se"+oração, em vez de usar uma preposição (como "sobre") entre elas. Não sei se é uma questão dialetal, mas a frase "fica a dúvida se esta palavra [...]" ou a frase "tenho dúvida se a ajuda virá" não me são erradas, e é o tipo de construção gramatical que percebo diariamente. Mas, de qualquer forma, coloquei em parêntese a preposição que o autor teria suprimido por elipse. Sinta-se livre para reverter minhas outras correções de pontuação que achar necessário.
    – Seninha
    Jul 30, 2017 at 14:15
  • Quanto à pronúncia de "alguma", realmente, agora que disseste, o autor estava referindo à pronúncia em hiato como normativa, não como usual. Creio ter interpretado errado quando li a primeira vez.
    – Seninha
    Jul 30, 2017 at 14:15
  • Isto é muito interessante: quer dizer então em 1739 /umɐ/ ou /uma/ já era a pronúncia dominante. Mas tens alguma ideia de quando surgiu a grafia huma e até quando persistiu hũa? Até foi mais a pensar nisso que eu fiz a pergunta. Não dever ter havido muita a gente a comentar a pronúncia. A passagem do autor acerca de boma é um pouco confusa. Eu nunca vi escrito boma por boa (já vi bõa).
    – Jacinto
    Jul 31, 2017 at 10:35

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