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No vocabulário brasileiro existem muitas palavras que, no Tupi, possuiam o som de /s/ (como em saca e caça) e foram inseridas no dicionário português com o C-cedilha ⟨ç⟩ ou o C-palatalizado ⟨ce, ci⟩. Por exemplo: "paçoca", "açai", cipó, "jacaré-açu", "minhocoçu", cupuaçu (e várias outras palavras com o sufixo "-açu/-oçu"). Pergunto por que, como no tupi não havia uma diferença fonética tal como a representada pelo ⟨s, c⟩ no Português, optaram por uma letra cujo som é sensível ao contexto (ca vs. ce) em vez da opção óbvia ⟨s⟩ ou ⟨ss⟩, que representa o mesmo som?

Minhas opções são:

  • Quando o tupi foi escrito, ainda havia a diferença na pronúncia entre o par ⟨ss, ç/c⟩ no dialeto dos portugueses colonizadores e/ou dos padres jesuítas que documentaram a língua local; daí preferiu-se usar a grafia ⟨ç⟩ por ser a grafia do português que melhor representava o som /s/ tupi.
  • O par ⟨ss, ç⟩ já era homófono aos colonizadores, mas preferiu-se grafar o tupi com ⟨ç⟩ por outro motivo qualquer (e qual seria?).

Nesta gramática tupi, do padre jesuíta Luis Figueira, publicada em Lisboa em 1687, usa-se a grafia ⟨ç⟩. O padre jesuíta José de Anchieta escreveu o seguinte, no primeiro parágrafo de seu livro sobre a língua local:

Nesta lingoa do Brasil não ha f, l, s, z, rr dobrado nem muda com liquida, ut cra, pra, etc. Em lugar do s in principio ou medio dictionis, serve ç com zeura, ut Açô, çatâ. [sic]

O que seria um "s in principio ou medio dictiones" e um "ç com zeura"? E por que esse tal "ç com zeura" era diferente do ⟨ç⟩ normal?

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  • 3
    Encontrei esta "tradução" desse trecho do José Anchieta: Nesta língua do Brasil não há f, l, s, z, rr nem (encontro de consoante) muda com (consoante) líquida, como cra, pra, etc. Em lugar do s no início ou no meio da palavra, serve ç, como açô [a-só], çatâ [s-atá].
    – Jacinto
    Jul 26, 2017 at 17:54
  • Então o dialeto dos jesuítas tinham a diferença s/ç, a ponto de ser notável em outras línguas? Eu pensava que essa diferença tinha se perdido no sul de Portugal antes da colonização e já teria chegado ao Brasil (e demais colônias) como par homófono.
    – Seninha
    Jul 26, 2017 at 18:02
  • 2
    Zeura parece significa 'cedilha'. Vê aqui e também aqui.
    – Jacinto
    Jul 26, 2017 at 18:03
  • 1
    Fui eu que escrevi que "foi esta a pronúncia [com fricativas só pré-dorsais] que foi para o Brasil"; é mais cauteloso dizer que foi essa pronúncia que vingou também no Brasil. De qualquer modo os tipos que escreveram o tupi chegaram ao Brasil já adultos e numa fase muito inicial da colonização.
    – Jacinto
    Jul 26, 2017 at 18:34
  • 2
    Para complicar, José Anchieta (1534-97) era das Canárias; foi estudar para Coimbra já aos 14 anos, e foi para o Brasil aos 19. O que ele chama "mudas" são provavelmente as oclusivas; vê Ortografia do Duarte Nunes de Leão (1576) f. 6 (acerca de d e t); vê também b, g e q. Ele sugere também que distingue o som de s do ç f. 23 esquerda: z "soa entre .s. & .ç. A qual letra, porque muitos vulgares a confundem com o .s. & aas vezes com o .ç. E aqui diz que ç soa como uma "specie de .z." Mas ele é complicado.
    – Jacinto
    Jul 26, 2017 at 19:43

1 Answer 1

3

A pseudorresposta que encontro é que simplesmente é a regra. Parece ser bem estabelecido (ver, e.g., 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7) que se prefere a cedilha em

palavras de origem árabe, italiana, africana e indígena

E aqui vale observar que não é portanto só no tupi e no guarani, mas também em outras línguas indígenas que se usa o ç (outro exemplo é o kaipó).

Claro que isto apenas altera a pergunta do título para algo como

O que motivou a regra de se usar a cedilha em muitas palavras estrangeiras?

E para essa não tenho resposta!

O outro assunto da pergunta - a fonética dos portugueses da época e dos indígenas - é complicado e não parece ter resposta unânime pelas publicações que pude encontrar.

Dentre os complicadores, vários já mencionados na pergunta e comentários, se destacam:

  • a qualidade de muitas fontes, inclusive de primárias, por vezes é questionável;
  • não se trata de uma língua, mas de muitas;
  • o tupi é língua viva, não é estática, então mesmo uma descrição correta se refere não apenas a um grupo em particular de falantes, mas a um tempo em particular;
  • a fala indígena, especialmente dentre aqueles que mais contato tinham com os estrangeiros, era provavelmente influenciada por suas línguas - ao ponto de uma nova língua se desenvolver, o "brasiliano", ou língua-geral.

As publicações mais relevantes que encontrei defendem posições díspares. Por exemplo, Mansur Guérios defende [1] que os sons de s e ç eram distintos na época:

O estudo explica por que o fonema (s de vocábulos tupis introduzidos no léxico português não é transcrito com s (ou ss), mas com c (+ e, i) e ç. O fato se baseia na existência do fonema africano / ts /, no século 16, tanto no tupi quanto no português, neste representado pelas grafias c (+ e, i) e ç.

Enquanto o, aparentemente mais conceituado e melhor embasado, Edelweiss escreve em sua sequência de artigos [2] quase sempre (mas há exceções) com s em tupi, explicitando no início da obra que "tem o valor [fonêmico] de ss", e com ç em português e brasiliano (e.g., "ygûasú" -> iguaçu). Um excerto da página 37:

   Brasiliano         Forma Tupi         Tradução Portuguêsa   

abá angaipaba oçú - abâ agaipab-eté   - pessoa terrível, tirano;   
abá karimbab oçú  - abá kyreymbá-katú - valentão;   
abá guaçú         - abá-gúasú         - grande homem, ilustre;   
abaiba oçú        - abai-katú         - abrasador, destruidor;   
anama oçú         - anam-usú          - basto, fechado (mato, capim);   
apyá oçú          - apyab-usú         - valoroso;   

[1] "Transcrição portuguesa de um fonema tupi", Revista Letras vol. 29 (1980), p. 129.
[2] "Gûaçú e usú na diacronia das línguas e dialetos Tupi-Guaranis", Revista do Instituto de Estudos Brasileiros: n. 7 (1969), p. 33-45; n. 8 (1970), p. 51-64; n. 9 (1970), p. 65-80; n. 10 (1971), p. 29-62; n. 11 (1972), p. 77-89; n. 12 (1972), p. 59-78.

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  • Resposta excelente.
    – Lambie
    Oct 24, 2019 at 17:11
  • @stafusa, esta resposta deixou-me um bocado desconsolado. A fonética dos portuguese no sXVI não é “outro assunto”, é uma questão central. Houve no português antigo dois sons diferentes, um representado por s, ss (/s/ apicoavelar), outro por ç, c(e, i) (/s/ pré-dorsal); vê esta pergunta. Precisamente uma possibilidade, a que a pergunta alude, é que os colonizadores que escreveram o tupi achassem que o /s/ do tupi era prédorsal.
    – Jacinto
    Oct 28, 2019 at 19:07
  • Agora, tu citas Guérios, que o ç representava no português o fonema /ts/. Pensa-se que este fonema existiu na evolução do latim para o ç no português; agora que ele persistisse no sXVI foi a primeirissimamente que ouvi. No sXVI muitos falantes já não faziam a antiga diferença entre ss e ç, coisa que já tinha começado no sXIII, portanto muito me espanta que o /ts/ ainda existisse na altura. Não me aumenta a confiança o Guérios chamar ao /ts/ fonema africano — é africado. Não sei se leste além do abstract, se sabes se isto foi um engano só ali ou se persiste no resto do texto?
    – Jacinto
    Oct 28, 2019 at 19:07
  • Ou eu não percebi, ou o Edelweiss simplesmente optou por grafar com s palavras indígenas que em português se grafam com ç. Mas isso diz-nos alguma coisa acerca da fonética antiga? Nós termos coisas como massa e maça deve-se exclusivamente à história particular do português. Atualmente não há razão fonética para as grafias diferentes.
    – Jacinto
    Oct 28, 2019 at 19:10
  • A tua regra inicial apoia-se em fontes (que tu numeras 1 a 7) que não me inspiram confiança nenhuma. São artigos genéricos sobre a cedilha. Duvido que na adaptação ao português de palavras do árabe, italiano, línguas africanas e indígenas, o ç fosse uma mera preferência. O português antigo conviveu diretamente com o árabe numa altura em que a distinção fonética entre ss e ç ainda era a norma. Então o pessoal ia escrever com ç só por preferência e não por o som árabe ser o pré-dorsal que os portugueses representavam com ç? >>
    – Jacinto
    Oct 28, 2019 at 19:10

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