O estudo de referência sobre o assunto é ainda a “Nova Proposta de Classificação dos Dialectos Galego-Portugueses” de Lindley Cintra de 1971 (Instituto Camões). Este estudo baseia-se em dados recolhidos pelo autor nos anos 50, mas é ainda nele que se baseia a discussão do assunto na imensa Gramática do Português da Gulbenkian de 2013 (p. 88-104).
Pronúncia diferenciada de sinto/cinto, coser/cozer, etc.
Segundo Lindley Cintra a pronúncia diferenciada nos pares sinto/cinto, massa/maça, coser/cozer, etc. ocorre nos falares transmontanos e alto-minhotos, no nordeste de Portugal. Pode ver-se neste mapa no Instituto Camões (zona a azul-claro). Mais abaixo na mesma página podem ouvir os dois ss em registos sonoros dessa região. O c seguido de e ou i e o ç segue a norma-padrão de Portugal e do Brasil, mas o s inicial ou ss intervocálico soa intermédio entre ç e ch.
Por exemplo, no registo de Perafita 2, o c/ç é pronunciado como na língua norma-padrão em ouço e mocinha, mas o s inicial/ss de senhoras, Souto, missa, assim, etc. é muito diferente, de tal forma que missa se aproxima de micha. O mesmo se passa com as variantes sonoras: o z em princípio de sílaba segue a norma-padrão, mas o s intervocálico aproxima-se do som de j; comparem no mesmo registo reza e dizia (norma-padrão) com casa e coisa (aproximam-se de caja e coija).
Para produzir estes “outros” ss, tentem pronunciar o s com a língua arqueada de tal modo que apenas a ponta se aproxima do céu da boca; por isso se chama apical, nomeadamente fricativa apicoalveolar sonora (casa) ou surda (massa); enquanto na pronúncia norma-padrão as fricativas são sempre pronunciadas aproximando uma parte maior da língua do céu da boca, chamando-se por isso fricativas alveolares pré-dorsais.
Explica a Gramática do Português (p. 96) que estas quatro fricativas eram a norma no português antigo. As apicoalveolares vieram do latim, onde já eram representadas por s; as pré-dorsais evoluíram também do latim, mas de sons representados do c e t quando seguidos de e, æ, i ou y (Cicero, Cæsar, certus, gratia, etc.); no latim clássico estes c e t eram mesmo pronunciados [k] e [t], mas começaram a evoluir para outros sons ainda no latim tardio, dando origem às nossas fricativas pré-dorsais, que eram representadas no português antigo por c (seguido de e ou i), ç ou z (para a evolução do som de ci, ce, etc., ver esta pergunta). Depois herdámos também palavras com este som do árabe.
Entretanto, exceto nos falares transmontanos e alto-minhotos, as quatro fricativas reduziram-se a duas, desaparecendo na pronúncia a diferença entre sinto e cinto ou coser e cozer. Nos dialetos meridionais, que se estendem até Aveiro, Coimbra e Castelo Branco (ver mapa no Instituto Camões) as fricativas apicoalveolares passaram a pré-dorsais, e foi esta a pronúncia que vingou no Brasil; entre esta região e a área dos falares transmontanos e alto-minhotos—uma área que inclui o Baixo Minho, Douro Litoral, Beira Alta e parte da Beira Baixa—foram as fricativas pré-dorsais que passaram a apicoalveolares; daí estas fricativas serem popularmente conhecidas em Portugal por s beirão.
Tch: tchave, tchuva, etc.
Novamente segundo Lindley Cintra, a pronúncia de ch, mas não do x, como se fosse tch (chave como se fosse tchave, bucho como se fosse butcho) ocorre numa área que coincide aproximadamente com a do s beirão (os dois azuis no mapa do Instituto Camões), mas não completamente, não incluindo por exemplo o litoral dos distritos de Braga e Porto. Podem ver o mapa do Lindley Cintra na “Nova Proposta” (p. 16), mas é difícil de ler.
Persistência e declínio destas pronúncias
Note-se que estas pronúncias ocorrem nestas regiões, mas não quer dizer que sejam dominantes. A minha impressão de contactos com pessoas dessas zonas, é estas pronúncias são pouco comuns. Em particular, a respeito do tch diz a Gramática do Português (p. 92):
Esta pronúncia, que é sentida como rústica, tem sido progressivamente eliminada. Conserva-se ainda, contudo, na pronúncia de pessoas idosas das aldeias […] materiais recolhidos posteriormente para o [Atlas Linguístico e Etnográfico de Portugal e da Galiza] revelam que, apesar de geralmente erradicado na fala das camadas jovens e adultas, ainda na última década do século XX, na área tradicional deste traço, pessoas que normalmente o omitem, pelo menos perante estranhos, na realidade ainda o conservam, deixando-o “escapar” na fala espontânea.
E já no final do século XIX, um observador comentava que a distinção sinto/cinto, coser/cozer estava a desaparecer na vila de Valpaços, bem no centro da região onde a diferença ocorre:
Nesta minha terceira carta á cêrca do sub-dialecto valpacense completarei as informações [...]
13. A distinção constante entre os valores de ç e s surdo, de z e s sonoro, que eu reputo, acompanhado o sr. Gonçalves Vianna, como caracterisitica phonetica do dialecto transmontano, vae desapparecendo nesta villa; facto de que o povo tem consciencia, pois diz de pessoa, que não faz esta distincção, ser cidadosa.
(“Linguagem Popular de Valpaços”, Revista Lusitana, vol. III, 1895, p. 325, disponível no Instituto Camões.)