Sim, esse padrão foi comum no português, europeu e brasileiro, até ao século XIX. Chama-se a isso apossínclise, que é, citando este artigo do Ciberdúvidas:
intercalação de uma ou mais palavras entre o verbo e o pronome átono proclítico (ex.: «o que eu lhe não disse» [em vez de: «o que eu não lhe disse»]). Conforme explicado na Gramática da Língua Portuguesa, de Mateus et alii (2003:866-867), este processo era generalizado no português antigo e clássico, contudo, a partir do século XVII, a interpolação restringe-se à palavra não [...]
Mas a Gramática do Português da Gulbenkian (2013, tomo I, p. 37) observa que interpolações mais variadas continuam a ocorrer em romancistas do século XIX e em falares regionais atuais. E dá o exemplo “quando lhe eu disse” (em vez de quando eu lhe disse), registado no Alto Alentejo no final do século XX. E ainda hoje eu encontrei “se me ella saisse um lôgro” (em vez de se ela me saísse) em Cavar em Ruínas de Camilo Castelo Branco (p. 19, originalmente publicado em 1866). Mas nada disto se compara a “pois m'eu [tanto] por vós de peidos vazo” (…me vazo) nesta cantiga de escárnio e maldizer do século XIII.
Não me recordo de ter encontrado esta apossínclise no português atual. Quando comecei, aqui há uns poucos anos, a ver isso em autores do século XIX, também estranhei (eu tinha lido Os Maias na escola há muito tempo, mas já não me lembrava).
Agora, andei a ver no Corpus do Português, e mesmo no século XIX é mais comum o pronome depois do não. Mas há um padrão interessante. Salvo raras exceções, o pronome só vem antes dos não nas circunstâncias que atualmente exigem a próclise (ignorando aqui a negação, que exige, ela mesma, a próclise). Exemplos (negrito meu; indico a data da primeira edição, não a da edição do Google Books):
Descanse, que lhe não tocarei num cabelo! (Aluísio Azevedo, A Condessa Vésper, 1882.)
A medicina,—por que lhe não manda ensinar medicina?
(Machado de Assis, Dom Casmurro, 1899.)
O vinho, o famoso vinhito do Filipe do Ver-o-peso, já lhe não parecia o mesmo.
(Inglês de Sousa, O Missionário, 1891.)
[...] às vezes, de quando em quando, se te não custasse
(Júlio Dinis, Uma Família Inglesa, 1868.)
Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar?
(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.)
Como te não lembraste dele, Ângelo? (Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor, 1867.)
A caridade só me não humilha quando parte do coração e não do dever.
(Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, 1862.)
[...] e faça favor de me não quebrar mais a cabeça;
(Inácio Maria Feijó, Camões no Rossio, 1810.)
Reparem que nestes exemplos, mesmo tirando o não, a outra palavrinha a negrito obriga o pronome a ficar antes do verbo. Salvo raras exceções, na ausência destas palavrinhas (vejam aqui uma lista mais longa, mas não completa, destas palavrinhas), o pronome fica sempre depois do não. No entanto, também encontramos o pronome depois do não mesmo na presença destas palavrinhas, e pela pena dos mesmos autores. Portanto parece que estas palavrinhas simplesmente permitiam a colocação do pronome antes ou depois do não, enquanto que sem elas teria de ser sempre depois. Esta colocação do pronome antes de não parece ter persistido por mais tempo em Portugal, e ainda se encontram exemplos infrequentes no final do século XX.