Devo me calar é corrente no português brasileiro informal e tem presença antiga na literatura; mas não é aceite na linguagem formal, nem ocorre no português europeu, formal ou informal, mesmo na presença de fatores que normalmente exigem a próclise.
O InfoEscola e o Norma Culta apresentam as regras de colocação prenominal na língua formal. Nomeadamente, nas locuções verbais com verbo principal no infinitivo, se não houver fator de próclise, o pronome vem em ênclise ao verbo auxiliar ou ao verbo principal:
devo-me calar ou devo calar-me
Com fatores que com verbo único exigem a próclise (não me calo, já me calo, e se te calasses? quem se cala, etc.), o pronome vem em próclise ao verbo auxiliar ou continua em ênclise ao verbo principal; não ocorre nunca próclise ao verbo principal:
não me devo calar ou não devo calar-me
quem se deve calar és tu ou quem deve calar-se és tu
já te podes sentar ou já podes sentar-te
A próclise ao verbo principal, com ou sem fator de próclise vem no entanto registada na Nova Gramática do Português Contemporânea (Lisboa, 2014) de Celso Cunha e Lindley Cintra. Eles começam por explicar em pormenor (p. 397-9) as regras acima. Depois (p. 400-1), continuam que no Brasil e em África, «principalmente no colóquio normal», ocorre também a colocação em próclise ao verbo principal (devo me calar) em qualquer tipo locução verbal (também com gerúndio e particípio). Citam a este propósito Martinz de Aguiar (Notas de português de Filinto a Odorico, 1955):
«Numa frase como ele vem-me ver, geral em Portugal, literária no Brasil, o fator lógico deslocou o pronome me do verbo vem, para adjudicá-lo ao verbo ver […] Isto é: deixou a língua falada no Brasil de dizer vem-me ver (fator histórico por ser mera continuação do esquema geral português), para dizer vem me-ver, que também vigia na língua, ligando-se o pronome ao verbo que o rege (fator lógico). Esta colocação de tal maneira se estabilizou, que pouco se diz vem ver-me […]
Alguns exemplos da literatura brasileira (ênfase minha):
Cada acontecimento, nesta guerra, deve nos servir de lição.
(Pedro Corrêa Cabral, Xambioá, 1993.)
Eu devia te tirar daqui a bofetadas.
(Erico Veríssimo, O Tempo e o Vento: Arquipélago, 1961.)
O velho tinha me acompanhado, mais devagar.
(Rachel de Queiroz, Dôra, Doralind, 1975.)
[...] e isto está me incomodando deveras.
(Coelho Neto, A Conquista, [1ª edição de 1899] 1985.)