O testemunho e exemplos do Centaurus, a que eu poderia juntar mais alguns, mostram que há comunidades que usam fazer-se de rogado com o sentido de ‘fazer-se desentendido’. E naturalmente que o podem fazer, pois não precisam para isso de autorização de ninguém. É verdade que se perdeu neste uso a ligação semântica ao significado de rogado e rogar, como observou o Artefacto. Mas o significado duma expressão existe na cabeça de quem a usa e nem sempre coincide com o que pode emergir dos significados das palavras que a compõem.
Ao que consegui apurar, este uso é exclusivamente brasileiro, e mesmo dentro do Brasil parece ser muito restrito. Quer no Google Books, quer no Google geral, mesmo restringido a busca ao Brasil, e olhando os resultados mais recentes, praticamente só se encontra o sentido tradicional de ‘relutância em aceitar uma proposta, em aceder a um rogo’, que é o único sentido que eu conheço em Portugal, e foi o único que encontrei na net da África lusófona. Ou melhor, neste ‘sentido tradicional’ estou a incluir algumas extensões. Explicam-se melhor na negativa, que é como a expressão mais aparece: não se fazer rogado aparece frequentemente com o significado de ‘ir em frente e não hesitar, não se inibir, não se intimidar’ ou até ‘força, não esteja com meias medidas’.
Na sentido tradicional da expressão, rogado tem o significado 2 do Aulete, ‘a quem se dirigem rogos’. E encontramos alguns exemplos em que a expressão é usada afirmativamente num sentido muito literal (ênfase minha em todas as citações):
A maioria das vezes o velho se fazia rogado e só depois de muito instado se dispunha a contar-nos alguma coisa.
[Aristides Van-Dunen (Angola), Estórias Antigas, 1981.]
Dona Senhora trancou-se, correu com força o ferrolho barulhento. Precisava lhe mostrar que não se brinca com uma mulher séria. E ficou a aguardar o faltoso ali, metida na cama, vagando.. moída, arrasada dos nervos. Que o relaxado quebrasse as ventas na porta fechada... Ele tinha de chamá-la, cuidadoso, e também necessitado. Queria muito o humilhar e se fazer de rogada.
[Francisco J. C. Dantas (Brasil), Cartilha do Silêncio, 1997.]
Muito mais frequentemente se encontra a expressão na negativa. O contexto por vezes é um pedido. O sentido é que não foi preciso rogar para a pessoa aceitar:
Pediu a Frei Dionisio pra confessá-la, pois estava em falta com Deus. Frei Dionisio não se fez de rogado e colocando a estola sobre os ombros, sentou-se no confessionário esperando.
[Joyce Cavalcante (Brasil), Inimigas Íntimas, 1993.]
Talvez mais frequentemente, o contexto é um convite ou oferta, que por vezes estão apenas implícitos Neste caso também não é preciso rogar ao convidado para aceitar, e a implicação é que ele não hesitou nem se inibiu:
— […] Quede a Dora?
— Tá lá dentro se aprontando. Pode entrar. Vá procurá-la. Fique à vontade — disse Valquíria, feliz.
Silvério foi entrando, sem se fazer de rogado.
[Pedro Corrêa Cabral (Brasil), Xambioá: Guerrilha no Araguaia, 1993.]
— Que é que tem este negro que manda mais que branco no engenho?
— O problema do Matias é que sempre foi muito mimado. Dom Lourenço deixou que Matias aprendesse a ler e a escrever. Dom Lourenço acabou dando corda ao negro…
— E o negro não se fez de rogado.
[Álvaro Cardoso Gomes (Brasil), Os Rios Inumeráveis, 1997.]
Patrice Trovoada atraído pelo som do bulawé, o governante não se fez rogado e aproveitou a circunstância para mostrar os seus dotes físicos, e de bom dançarino.
[“Primeiro-Ministro Patrice Trovoada inaugura obras sociais e dança bulawé ‘Mão no Chão’ ”, Agência Noticiosa de S. Tomé e Príncipe, (posterior a 2007)]
O uso da expressão tem-se alargado a contextos em que não se menciona convite nenhum ou em que um convite seria mesmo absurdo. Mas nós podemos ainda imaginar que se um convite tivesse sido feito, ele teria sido aceite sem ser necessário rogar o convidado. Na realidade o que se quer dizer é que o ‘convidado’ agiu sem inibição ou hesitação:
Outro dia eu tava andando / E escutei no rádio uma cantiga tocar / Um troço esquisito ritmado / Não me fiz de rogado, puxei uma prenda [moça] pra dançar
[Doidivanas (banda gaúcha), Xote de Zerife.]
Ao encontrar com um candidato, não se faça de rogado: puxe a sua listinha e vá até ele, perguntando o que ele tem a dizer a respeito de cada item. Questione.
[Charbel Tauil, “Voto Valioso”, O Fluminense, 28-8-2016.]
Os campeões nacionais não se fizeram rogados e, num ataque bem organizado, criaram pânico na baliza de Gervásio, através de um portentoso remate de Fred, mas Gervásio respondeu com uma defesa em dois tempos.
[“Moçambola – 2009”, Jornal Desportivo de Moçambique, 18-5-2009.]
Mesmo nestes últimos exemplos é possível descortinar o sentido de não se fazer rogado: não foi preciso rogar à pessoa para ela agir. Já no sentido de ‘fazer-se desentendido’ isso é mais difícil. Especulei uma possível origem deste sentido. Em muitos contextos em que se usa a expressão no sentido tradicional, a relutância da pessoa em aceitar o convite ou pedido é apenas exterior, fingida portanto. E alguns falantes poderiam, por desatenção ao significado próprio de rogado, passar a relacionar a expressão com o fingimento e não com a relutância. Eis dois exemplos em que a relutância é fingida:
Quem tivesse alguma perspicácia conheceria, não com grande facilidade, que o major estava há muito tempo disposto a ceder, porém que queria fazer-se rogado.
[Manuel Antônio de Almeida (Brasil), Memórias de um sargento de Milícias, 1852.]
À noite, marcando o fim da semana das festas do Bonfim, havia bailes nas casas de famílias da classe média suburbana, com o pianista, “um moleque de croazê” fazendo-se de rogado, “fingindo má vontade”, até que a dona da casa o conduzia pelo braço ao banquinho do piano
[José Ramos Tinhorão (Brasil), Século XX, 2010.]
Noutros contextos a atitude de uma pessoa presta-se a interpretações que oscilam entre o ‘fazer-se rogado’ no sentido convencional e ‘fazer-se desentendido’, o que pode facilitar a transferência de Significado. Por exemplo, no exemplo seguinte uma mulher interpela um rapaz, e este ignora-a. Quem está de fora pode pensar que o rapaz finge não perceber que a mulher se dirige a ele — se faz de desentendido — ou que ele quer que ela insista antes de lhe dar atenção — se faz de rogado:
Sem nada dizer, o silêncio ainda foi a minha resposta, e isso provocou mais os nervos da malfadada senhora.
— Ô, menino! Estou falando com você! — Bradou alto. — Não se faça de rogado! O que pensa que tu é? Num passa de um pobre diabo! Seu pai há de saber da tua petulância comigo! Mas onde já se viu? Um fedelho desse ignorar uma senhora de respeito como eu!
[Manuel Pedro Souza Oliveira (Brasil), Alma de Nadador, 2014.]