Estou convencido que a variação regional na preferência entre os nomes gê e guê é consequência e não causa da existência dos dois nomes. A causa parece-me ser esta: nós recebemos os dois nomes do latim; e por outro lado existe uma preferência largamente maioritária pelo nome gê, mas guê é o nome preferido para ensinar as crianças a ler.
No latim clássico, falado nos séculos I e II, o g tinha apenas o som /g/ (como em gato ou guerra). Portanto genus era pronunciado guénus. Depois deste período, o som do g quando seguido de e, i ou y começou a sofrer uma palatização que acabou por o transformar no /dƷ/ (como em bridge no inglês) do latim medieval e eclesiástico, do italiano e do romeno, no /Ʒ/ do português (vigília) e francês, e no /x/ do castelhano (Cartagena). Quando seguido de a, o ou u o som de g permaneceu /g/. (Vejam este artigo da Wikipedia)
Esta mudança foi ditada pela lei do menor esforço. Para lermos guerra ou guita, a língua coloca-se numa posição recuada para produzir o /g/ e depois tem que se chegar rapidamente à frente para pronunciar o e ou i. Para pronunciarmos o a, o ou u, a língua fica em posição recuada tal como para o som /g/. Portanto no latim tardio, nos conjuntos ge, gi e gy, a língua foi tentando pronunciar o g em posição cada vez mais avançada para facilitar a transição para a posição do e, i ou y, alterando o som da consoante. Exatamente a mesma coisa se passou com a letra c, que no latim clássico representava apenas o som /k/ (Cícero era pronunciado Kikero), e depois, antes de e ou i, evoluiu para /s/, /tʃ/ ou /Ɵ/ nos descendentes moderno do latim. (As duas pronúncias podem ser ouvidas aqui.)
Ora os nomes das letras no latim clássico seguiam mais ou menos o padrão que ainda hoje seguem no português. As primeiras consoantes do alfabeto eram pronunciadas (escrevendo à portuguesa) bé, ké, dé, éf, gué. Portanto o nome da letra g terá sofrido a palatização do g antes de e e i, dando o nome gê em português e francês. Gê é por isso provavelmente o nome original do g em português. É esta a opinião deste artigo no Ciberdúvidas. Se por acaso os romanos tivessem lido as letras bá, ká, gá, a letra g provavelmente seria ainda lida gá nas línguas modernas.
Pelo menos desde o Renascimento que os estudiosos redescobriram o latim clássico, como se pode ver neste artigo do Ciberdúvidas:
Duarte Nunes de Leão, insigne jurista, historiógrafo e glotólogo, na sua Ortografia da Língua Portuguesa (1576), refere que usamos o G na sua própria significação quando o juntamos às vogais a, o e u, e que «outra pronunciação lhe viemos a dar, imprópria e adulterina, quando se ajunta ao e, i, que fica soando como i consoante* (...). A qual pronunciação com e, i, é alheia dos Gregos e Latinos, e própria dos Mouros, de quem a recebemos. De maneira que para pronunciarmos o G com e, i, da maneira própria e natural, como o pronunciamos com a, o, u, lhe acrescentamos um u, líquido, e dizemos Ga, Gue, Gui, Go, Gu». (* o i consoante é o atual J.)
O insigne Duarte Nunes de Leão estava redondamente enganado acerca de termos recebido a pronunciação gê dos mouros, mas mostra que a pelo menos a partir do século XVI já se sabia da pronúncia do g no latim clássico, abrindo a possibilidade para o nome alternativo guê.
O nome gê é no entanto claramente o preferido, pelo menos na atualidade. Aqui em Portugal, creio que só mesmo as crianças nos primeiros anos de escola, e os seus professores, é que usam o nome guê. Nas siglas o g é sempre pronunciado gê mesmo quando abrevia uma palavra onde é pronunciado guê: por exemplo GNR, Guarda Nacional Republicana, é pronunciado gê-ene-erre; do mesmo modo, TGV, Train à Grande Vitesse, é tê-gê-vê. A música A B C do Sertão de Luíz Gonzaga, agradecimentos ao Bfavaretto pela sugestão, sugere que o nome gê é uma peculiaridade sertaneja:
Lá no meu sertão, p'r' os caboclo ler, tem que aprender um outro ABC.
Mas há uma coisa que ajuda o nome guê a persistir: é este o nome geralmente usado para ensinar as crianças a ler: vejam este artigo do Ciberdúvidas e este outro. Eu googlei ensino do alfabeto na educação infantil – imagens, e verifiquei que a letra g é sistematicamente ilustrada com um gato. Este site usa uma ficha com várias ilustrações para cada letra, e no g, para além do inevitável gato, aparece uma galinha, um garfo, e outras coisas que começam com o som guê. Parece que as crianças começam por aprender palavras com ga, go, gu e só mais tarde é que aprendem coisas como gelo e giz. E facilita-lhes a aprendizagem aprenderem que a letra se chama guê.
É claro que o c também começa por ser ensinado em palavras em que soa quê (vejam exemplo no último link), e nem por isso mantém o nome quê entre os adultos. Creio que isso seria impedido pela existência do q. O g não tem essa concorrência, porque o j se chama jota. Mas eu lembro-me de aprender o c de cão e o q de nove (assim chamado devido à sua forma). Noutras paragens chamam-lhe o q de quá-quá (vejam comentário abaixo).
Portanto parece-me que o nome gê é o original, tendo resultado da evolução do latim tardio e depois deste para o português, com evoluções paralelas para outras línguas. O nome guê sobrevive por ser usado no ensino das crianças, recebendo também a legitimação do latim clássico.