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Qual a função do verbo haver, em “Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado”, de Gregório de Matos?

O Priberam traz as seguintes definições para haver, como verbo transitivo:

  1. Ter, possuir, estar na posse de.
  2. Conseguir.
  3. Considerar, julgar.
  4. Existir (ex.: há café acabado de fazer; há pessoas assim). [Verbo impessoal]
  5. Acontecer, suceder (ex.: hoje à noite há festa; houve dois acidentes graves). [Verbo impessoal]
  6. Ser decorrido ou ter passado determinado período de tempo (ex.: são amigos há mais de trinta anos; vi-o há uma hora na biblioteca). [Verbo impessoal

Nenhuma delas parece se adequar perfeitamente ao trecho em questão.

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  • Não entendo o ditado, então não posso responder com certeza, mas por que transitivo e não auxiliar, já que pecado pode ser particípio?
    – Dan Getz
    Jun 29, 2016 at 12:27
  • Você tem razão. Eu estava partindo do pressuposto que "pecado", neste caso, é substantivo. De qualquer modo, se for este o caso, o significado do verso continua obscuro. Basicamente: "pequei, mas não porque pequei". Do outro lado, tratando-se de um poema barroco, talvez isso tenha sido intencional... Jun 29, 2016 at 12:51
  • 2
    É preciso o verso seguinte para compreender: Pequei Senhor: mas não porque hei pecado/ Da vossa Alta Piedade me despido (despido = despeço). A minha interpretação é: não é por ter pecado que me despeço da vossa Alta Piedade.
    – Jacinto
    Jun 29, 2016 at 12:56
  • Obrigado, Jacinto. Você pode transformar esse seu comentário em uma resposta, para que eu possa aceitá-la? Jun 29, 2016 at 13:22

1 Answer 1

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O verbo haver é usado nesse verso como verbo auxiliar, tal como acontece uns versos mais abaixo no soneto completo (ênfase minha):

Pequei Senhor: mas não porque hei pecado,
Da vossa Alta Piedade me despido: [= me despeço]
Antes, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, já cobrada,
Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História,

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória

A minha interpretação dos dois primeiros versos é:

Pequei Senhor: mas não é por ter pecado que me despeço da vossa Alta Piedade = mas apesar de ter pecado não me despeço da vossa Alta Piedade.

Atualmente o pretérito perfeito composto haver + particípio passado é relativamente pouco usado, ao contrário de ter + particípio passado. Mas era frequente no século XVII, ao tempo do autor Gregório de Matos (1636-96). No entanto, enquanto atualmente tenho pecado signfica que pequei contínua ou repetidamente até ao presente, naquela altura significava apenas que cometi pecados no passado: só mais tarde é que ter + particípio passado passou a implicar necessariamente a ideia de continuidade ou repetição da ação até ao presente. Quando é que esta mudança no sentido do pretérito perfeito composto se deu é objeto desta pergunta.

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