Referindo-se a lugar onde se manifestam espíritos e espectros, mal assombrado parece ser a expressão mais antiga: aparece já no final do século XVIII, enquanto assombrado só consigo encontrar já no século XX. Mal assombrado parece ser exclusivamente brasileiro, e há a possibilidade de também assombrado ter surgido primeiro no Brasil e só depois passar a Portugal.
As duas expressões vêm de sombra. Possivelmente por os cavalos se assustarem com sombras (Houaiss, Lisboa 2003), surgiu assombrar(-se) e, correspondentemente, assombrado com o significado de ‘assustado’, ‘aterrado’, nomeadamente, ‘aterrado como visões e aparições do demónio’, ‘sob a influência do demónio’, ‘molestado, atormentado’ (por algo mau). A nossa aceção de assombrado poderia facilmente vir daqui. Foi também daqui que veio o sentido ‘espantado, pasmado, maravilhado’ que assombrado mantém hoje (Aulete 4)
Paralelamente surgiu bem assombrado e mal assombrado. Um significava ‘bonito’, ‘com aspeto agradável’, ‘alegre’, ‘promissor’; o outro, o oposto: ‘feio’, ‘medonho’, ‘com mau aspeto’, ‘que inspira apreensão, medo’, ‘desgraçado’.
Parece-me que foi do cruzamento deste mal assombrado e de assombrado no sentido de ‘atormentado, molestado’ (por algo mau) que surgiu o mal assombrado no sentido de ‘frequentado por espíritos’ (passrei a referir-me a esta aceção por o nosso mal assombrado). Este sentido aparece explicitamente pela primeira vez no Google Books em 1789, no dicionário de Moraes Silva (MS 1789), no verbete assombrado (grafia original em todas as citações):
§ Casas mal assombradas , as que se dizem frequentadas de espiritos.
Quatro anos depois, o dicionário da Academia Real de Ciências de Lisboa de 1793 não inclui o nosso mal assombrado, mas a sua página e meia dedicada a tudo o que se relaciona com sombra e assombrar (é uma pena que não tenham passado da letra A), e repleta de citações literárias, ajudam a compreender melhor as aceções antecedentes (as citações literárias estão em letra normal; quase tudo o que é definição, em itálico):
ASSOMBRAR […]
Causar admiração ou pasmo […]
Atemorizar, intimidar, assustar, espantar com medo[…]
Vexar. Do demonio , quando persegue as creaturas com visões e apparições […] Parece que o demonio , que o assombrava [hum boi] lho matou […] e pedirlhe o socorresse de modo , que o demonio perdesse de todo o ponto o poder , que tinha pera assombrar aquelle corpo.
De acordo com esta última aceção vexar (que de acordo com MS 1789, significava na época ‘perseguir’, ‘atormentar’, ‘molestar’), temos nos verbetes assobrado e assombramento:
Assombrado do demonio, &c. Vexado pelo espirito maligno […] O menino parecia que era chêo e assombrado do demonio […] Huma moça assombrada do espirito maligno
Assombramento abs. ou do demonio […] Padecer grandes assombramentos do demonio […] Huma mulher trouxe hum filho endemoninhado á capella do Santo… e ficou o filho livre do assombramento.
Assombrado significava também ‘afetado por’ (qualquer coisa má):
ASSOMBRADO […]
Usase como adj. Accommettido, assaltado, tocado de algum mal ou damno […] Acabem já receios de mudanças, De cujo medo andei sempre assombrado […] coração assombrado de tristeza […]
Esta ideia aparece também no verbete assombramento
Assombramento de ar. Molestia procedida por alguma ligeira passagem do ar. […]
Assombramento do coração. Molestia , que opprime o coração
Dentro do verbete assombrado, aparece bem e mal assombrado:
Bem ou mal assombrado. De bom e agradavel aspecto e presença ou pelo contrário […] Todos bem disposto , tanto homens como mulheres , de rosto alegre , bem assombrados […] O rosto era fêo , e mal assombrado […]
Seguelhe em ou no […] Foi de estatura meãa , mui bem assombrado nos olhos […]
Que mostra ou denota alegria ou satisfação interior, ou pelo contrário. […] Nunca mais bem assombrado, nem mais alegre rosto lhe virão.
[…]
Do ar , tempo , &c. […] O tempo da partida foi prospero , bem assombrado […] De nuvens tão escuras e mal assombradas tirou [Deus] raios fermosos de luzes resplendecentes.
Ainda sobre bem e mal assombrado, as passagens seguintes parecem pressagiar a nossa aceção de mal assombrado:
Dos lugares […] E foise a hum ermo mal assombrado , e chêo de todos os temores […] E venho do lugar , para onde tu caminhas , e não he tão bem assombrado , que pareça saudável sem companhia.
Dos edifícios e artefactos […] Além de todas [as casas] por dentro serem melancolicas , escuras , e mal assobradas […] Ficou o Collegio em sua quantidade de mui boa fórma , airoso , e bem assombrado.
Assombrar significava também ‘fazer sombreados numa pintura’, equivalente ao atual sombrear (Aulete 3). Não é claro se bem e mal assombrado vem deste significado, começando por ‘bonito’ e ‘feio’ e evoluindo para os outros sentidos; ou se mal assombrado veio de assombrado no sentido de ‘sob influência’ (de coisa má) e paralelamente surgiu bem assombrado com o significado de sob influência de coisa boa. De muitas passagens fica-se com a ideia que o pessoal da altura via muito da situação em que se encontravam como a influência de uma ‘sombra’ que podia ser boa ou má.
Seja como for não é nada difícil ver o nosso mal assombrado—‘frequentado por espíritos’—surgir destes outros sentidos de mal assombrado e assombrado. Ora o dicionário de Moraes Silva de 1789, onde o nosso mal assombrado primeiro aparece, foi publicado em Lisboa, mas o autor é natural do Rio de Janeiro. Excetuado as edições seguintes do MS, esta a expressão não volta a aparecer nos mais importantes dicionários publicados posteriormente em Portugal: nem no da Academia de 1793, nem no monumental Thesouro da Lingua Portugueza de 1871; também não a encontro na literatura portuguesa. Encontro-a no entanto na literatura brasileira a partir da segunda metade do século XIX. Tudo isto indica que a expressão é, desde a sua origem, exclusivamente brasileira. Eis um dos primeiros exemplos claros que encontrei (meu negrito em todas as citações):
Aquele lugar tinha reputação de mal-assombrado […] Um, que por desgraça teve de passar por lá a desoras [… c]ontou, que vira sobre a sepultura levantar-se um fantasma monstruoso […]
(Bernardo Guimarães, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, 1872.)
Os dicionários de Cândido de Figueiredo, publicados em Portugal em 1899 e 1913, continuam a não ter o nosso mal assombrado. Segundo o Houaiss (Lisboa, 2003) o suplemento ad edição de 1899 tem no entanto assombração. Eu não consegui encontrar esse suplemento, mas na edição de 1913, assombração já aparece no corpo principal, classificado como brasileirismo; nomeadamente, na aceção que mais nos interessa, como brasileirismo de São Paulo:
assombração f. Bras. Susto, causado pelo encontro ou apparição de coisas sobrenaturaes; terror procedente de causa inexplicável. Bras. de San-Paulo. Apparição fantástica, que produz terror. (De assombrar)
Assombrado, com o nosso sentido preciso, só consegui encontrar a partir de 1940, quase o mesmo tempo em Portugal e no Brasil:
O passado deixou ali tanto grito perdido, tanto cadáver insepulto, tanta alma penada […] E vá de inventar que havia um tesouro escondido naquele ermo de maldição. Encontrá-lo é que era difícil. Enterrado entre penedias, guardado por mil fantasmas, quem teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte excomungado, lá continuava azulado na distância, agreste e assombrado.
(Miguel Torga (Portugal, 1907-95), Novos Contos da Montanha, 1944.)
Quando reparou, ia passando pelo angicó, êsse que dizem que é assombrado. Correu um pouco, coração aos pulos, olhando para trás, a cada barulhinho. Ave, Maria, cheia de graça, meu Deus do céu, livrai-me de assombração
(Ruth Guimarães (Brasil, 1920-2014), Água funda, 1946.)
A partir de então, este assombrado encontra-se até ao presente quer em Portugal quer no Brasil; no Brasil, com menor frequência que mal-assombrado.
Entretanto, o meu dicionário Lello Universal de 1992 diz que esta aceção de assombrado é um brasileirismo. Este dicionário é claramente um edição muito anterior com acrescentos. Em 1992 assombrado não era um brasileirismo, mas é possível que umas décadas antes o fosse. Há portanto a possibilidade de também este assombrado ter tido origem no Brasil.
Não que em Portugal não existisse a ideia de lugares frequentados por espíritos. Por exemplo, este artigo de 1844 na Revista Universal Lisbonense fala de uma casa desabitada em Lisboa onde tinha havido crimes e «se ouvia ao bater da meia noite, uma restolhada seguida de uns gemidos , tudo muito sobrenatural». Simplesmente não lhe chamam nem assombrada nem mal assombrada (chamam-lhe amaldiçoada).
Para o surgimento de assombrado com o significado de mal assombrado, consigo imaginar duas vias possíveis. Uma, também possível em Portugal, seria apenas uma evolução dos antigos significados de assombrado, em especial o ‘atormentado pelo demónio’ e similares. A outra via, possível apenas no Brasil, é de mal assombrado. Esta expressão, com o nosso sentido, já vem do século XVIII. Depois de entrarem em uso, relacionados com este mal assombrado, assombração e assombrar, seria fácil algumas pessoas deixarem cair o mal de mal assombrado. Se assombrações assombram uma casa, seria natural dizer que a casa é simplesmente assombrada.