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Uma vem do latim una, tal como um vem de unus. Ora estas palavras latinas deram no italiano, catalão, castelhano, etc. una e uno. No caso do um consigo pelo menos especular uma via, possivelmente errada (ver comentários abaixo): perdemos a vogal final, o som /n/ deu lugar à nasalização da vogal anterior, como aconteceu geralmente em fim de sílaba; e depois foi uma mera convenção gráfica que ditou indicarmos com m a nasalização duma vogal no fim duma palavra. Imagino que no francês um processo fonético parecido tenha transformado o unus em un, só que a convenção gráfica francesa é indicar com n a nasalização de todas as vogais, mesmo no fim de palavras. Mas no francês ao menos, o latim una ficou-se por une. Mesmo em português, as mesmas palavras latinas unus e una deram nos adjetivos uno e una (indivisível). Como é que apareceu o som /m/ em uma é que é mais surpreendente.

Como e quando é que se deu então a transformação de unus em um e de una em uma?

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  • 1
    Se ires da forma castelhana e asturiana (una) à galega (uña) à mirandesa (ũa), acho que será possível notar uma possibilidade de como: os lábios (ao menos para mim), fecham-se e põem-se um pouco mais redondos quando já não tem consoante. Ao fechar-se um pouco mais e pôr-se um pouco mais redondos, a pronúncia fica mais como um M aproximante. Mas só é uma hipótese feita rápida. Pode ser totalmente errada Commented Jan 16, 2016 at 14:21
  • Em um não creio que o 1o passo tenho sido o desaparecimento da final vogal, já que se vê huũ e hũu em textos antigos. Quanto a una, desde que há textos em português que se vê hũa (muito mais frequente que una no CIPM) e até huũa. Daí ao m não sei. Por exemplo lũa passou simplesmente a lua.
    – Artefacto
    Commented Jan 16, 2016 at 14:49
  • @Artefacto Reformulei a pergunta: agora pergunto também como se chegou ao um.
    – Jacinto
    Commented Jan 16, 2016 at 15:01
  • 1
    (@guifa, não leves a mal, espero que ajude: "se fores", "quando já não há" ou "quando deixa de haver", "porem-se".)
    – ANeves
    Commented Jan 17, 2016 at 3:03
  • 1
    @ANeves Admiro pessoas assim: vêm da borga a meio da noite, mas ainda encontram disposição para ajudar os outros, e lucidez para o fazer bem!
    – Jacinto
    Commented Jan 17, 2016 at 20:19

1 Answer 1

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O ⟨uno > um⟩ deve-se por convenção ortográfica. Quanto ao ⟨una > uma⟩, eis o motivo:

No galego-português (GL-PT, ou português antigo), palavras latinas paroxítonas e proparoxítonas da forma /-Vna, -Vno/ (onde V é uma vogal qualquer) sofreram uma alteração fonética, na qual o som /n/ fundiu-se com a primeira vogal criando um hiato nasal-oral. No português moderno (e no galego) esses hiatos transformaram-se em ditongos, monotongos, hiatos orais e até mesmo desaparecendo por inserção de consonante.

Eis a lista dessas alterações (tabela de fusões nasais).

    =====EVOLUÇÃO FONÉTICA====  =====EVOLUÇÃO ORTOGRÁFICA=====
##. LATINO > GL-PT > PORTUGUÊS  LATINO    > GL-PT  > PORTUGUÊS

A1. /-a.nõ > -ã.o  > -ãw̃/       ⟨manum    > mão    > mão⟩
A2. /-a.na > -ã.a  > -ãː/       ⟨mattiana > maçãa  > maçã⟩

O1. /-o.nõ > -õ.o  > -õw̃/       ⟨bonum    > bõo    > bom⟩
O2. /-o.na > -õ.a  > -o(w).a/   ⟨corona   > corõa  > coroa⟩

E1. /-e.nõ > -ẽ.o  > -e(j).o/   ⟨frenum   > frẽo   > freio⟩
E2. /-e.na > -ẽ.a  > -e(j).a/   ⟨sirena   > serẽa  > sereia⟩

I1. /-i.nõ > -ĩ.o  > -ĩ.ɲo/     ⟨vinum    > vĩo†   > vinho⟩
I2. /-i.na > -ĩ.a  > -ĩ.ɲa/     ⟨gallina  > galĩa† > galinha⟩

U1. /-u.nõ > -ũ.u  > -ũw̃/       ⟨unum     > (h)ũu† > um⟩
U2. /-u.na > -ũ.a  > -ũ.ma/     ⟨una      > (h)ũa† > uma⟩

†Os artigos indefinidos podiam ser escritos com ou sem ⟨h⟩ (tanto ⟨ũu, ũa⟩ quanto ⟨hũu, hũa⟩); e ⟨vĩo⟩ também pode ser encontrado como ⟨vỹo⟩ ou ⟨vinno⟩, dependendo do local, período e autor.

Os casos Ux são interessantes pois são raras as palavras latinas terminadas em ⟨-unum, -una⟩, sendo o numeral/artigo o mais notável, onde tal transformação ocorreu. No galego-português, a palavra "ũa" era pronunciada como um hiato nasal; e, no português moderno, transformou-se em duas vogais intercaladas por uma consoante nasal ("uma"). Isso não é estranho pois nos casos Is também houve um hiato sendo intercalado por uma consoante: "galĩa > galinha".

Num primeiro estágio, no galego-português, criou-se os hiatos a partir da fusão e eliminação do /n/ latino que havia entre essas vogais:

  • Nos casos Is ocorreu /i.na > ĩ.a/.
  • Nos casos Us ocorreu /u.na > ũ.a/.

Num segundo estágio, ainda no galego-português, estes hiatos foram quebrados pela inserção de uma aproximante nasal com características fonéticas similares à vogal que inicia o hiato:

  • Nos casos Is, a vogal /i/ ocorre na posição palatal com os lábios abertos. Portanto, a aproximante nasal inserida é a palatal não-labializada /j̃/: /ĩ.a > ĩ.j̃a/. Uma das grafias de "galinha" deste período refletem a inserção da aproximante: ⟨galỹa⟩ e ⟨vỹo⟩, pois e o ⟨y⟩ sem til já era usado para representar a aproximante não-nasal (oral): ⟨rayz⟩ e ⟨fevreyro⟩.
  • Nos casos Us, a vogal /u/ ocorre na posição velar com os lábios arredondados. Portanto, a aproximante nasal inserida é a velar labializada /w̃/: /ũ.a > ũ.w̃a/.

Num terceiro estágio, já no português e galego modernos, as consoantes aproximantes inseridas anteriormente sofreram fortição, i.e., perderam a característica de aproximante e transformaram-se em oclusivas:

  • Nos casos Is, o /j̃/ transformou-se na consoante nasal oclusiva que ocorre no mesmo ponto de articulação, o /ɲ/: /ĩ.j̃a > ĩ.ɲa/.
  • Nos casos Us, o /w̃/ transformou-se na consoante nasal oclusiva que ocorre no mesmo ponto de articulação. O problema é que /w̃/ é uma consoante co-articulada, e ocorre em 2 pontos: o ponto labial (devido ao arredondamento dos lábios) e o ponto velar (onde a vogal /u/ era articulada). Portanto, a consoante nasal oclusiva que substituiu o /w̃/ poderia ser a labial /m/ ou a velar /ŋ/. E de fato ambas alterações ocorreram: no português moderno ocorreu /ũ.w̃a > ũ.ma/ (uma) e no galego ocorreu /ũ.w̃a > ũ.ŋa/ (unha).

Em resumo, as transformações, do latino até o português moderno, desde a eliminação da consoante nasal até a criação duma outra consoante nasal foram:

  • /i.na > ĩ.a > ĩ.j̃a > ĩ.ɲa/. Exemplo: ⟨gallina > galỹa > galinha⟩.
  • /u.na > ũ.a > ũ.w̃a > ũ.ma/. Exemplo: ⟨una > (h)ũa > uma⟩.

Porém, apesar de o português moderno usar as consoantes oclusivas /m, ɲ/, alguns dialetos e algumas línguas parentes do Galego-Português se mantêm nos estágios que precederam a fortização:

  • Os dialetos brasileiros nordestino e da costa norte pronunciam ⟨-uma, -inha⟩ como /-ũ(w̃)a, -ĩ(j̃)a/ (i.e., como hiato nasal ou vogais intercaladas por aproximante nasal). Eu, por exemplo, falo "ũa galĩa" em vez de "uma galinha". Ouça, neste Uma pra mim, uma pra tu do Luís Gonzada (YouTube), a pronúncia do artigo "ũa" (aos 1:13).
  • O Mirandês possui como artigo feminino a forma em hiato, porem oral, ⟨ua⟩. Mas alguns dialetos possuem ⟨ũa⟩, conservando a nasalidade.
  • A Fala da Estremadura (Espanha) também possui como artigo feminino ⟨ũa⟩, que é por vezes escrito ⟨un‑a⟩, com o hífen como artifício para forçar separação silábica, obrigando o /-n-/ a formar sílaba com o /u/ em vez de com o /a/.

Neste livro são discutidas a fusão nasal do latim para o galego-português, na página 16; e a alteração desses hiatos do galego-português para o português moderno, na página 26.

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  • 2
    Excelente! Então no galego, "ũ.w̃a > ũ.ŋa/ (unha)", unha soa um pouco como unga? Eu pergunto-me se isto--o u convida /w̃/, que convida /m/ ou /ɲ/--não terá alguma relação com a escolha do m para o som nasal em fim de palavra (a tua outra pergunta). O som nasal mais frequente em fim de palavra é capaz de ser o /-ãw̃/. Hoje grafamo-lo -ão ou -am conforme ela seja tónico ou átono (com meia dúzia de exceções). Mas talvez no passado, nalguns dialetos, talvez a pronuncia se aproximasse algo de /ã(w)m/, convidando a grafar a palavra com -m?
    – Jacinto
    Commented Jul 26, 2017 at 8:21
  • 1
    Sim, em galego "unha" soa semelhante a "unga"; ouça a pronúncia. Como cogitas, talvez usamos ⟨-m⟩ para escrever sons finais nasais por causa do reflexo do aproximante nasal português /w̃ > m/. Em galego, usa-se, para escrever finais nasais o ⟨-n⟩, que é pronunciado com o /-ŋ/ de "unha", não com o /-n/ de "una" como no espanhol, conforme especificado aqui, assim, "irmán" (irmão) pronuncia-se /iɾ'maŋ/, provavelmente um reflexo do aproximante nasal galego /w̃ > ŋ/.
    – Seninha
    Commented Jul 26, 2017 at 11:48
  • 1
    Isso é no galego padrão, pois nos dialetos orientais "irmán" pronuncia-se /ir'maw/, com um ditongo semelhante ao português, exceto que oral em vez de nasal (galego não possui ditongos nasais, e muitos dialetos sequer possuem monotongos nasais), conforme especificado no livro «Dialectoloxía da lingua galega» de Francisco Fernández Rei (tentei encontrá-lo na Internet mas só achei uma cópia pirata), e na seção sobre dialetos da Wikipedia anglófona.
    – Seninha
    Commented Jul 26, 2017 at 12:16
  • 1
    Não, nunca ouvi "ũa galĩa" por estas bandas. Mas encontro hũa em muitas publicações ainda do sXIX. Eu convivi muito com brasileiros, mas fiquei surpreendido quando encontrei o "talvez abuso" no Dom Casmurro do Machado de Assis. Tu és do Nordeste, Ceará, certo?
    – Jacinto
    Commented Jul 26, 2017 at 14:49
  • 1
    Acrescentei "(Espanha)" à "Estremadura". Também existe uma Estremadura em Portugal.
    – Jacinto
    Commented Aug 11, 2017 at 10:02

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