O ⟨uno > um⟩ deve-se por convenção ortográfica. Quanto ao ⟨una > uma⟩, eis o motivo:
No galego-português (GL-PT, ou português antigo), palavras latinas paroxítonas e proparoxítonas da forma /-Vna, -Vno/
(onde V
é uma vogal qualquer) sofreram uma alteração fonética, na qual o som /n/
fundiu-se com a primeira vogal criando um hiato nasal-oral. No português moderno (e no galego) esses hiatos transformaram-se em ditongos, monotongos, hiatos orais e até mesmo desaparecendo por inserção de consonante.
Eis a lista dessas alterações (tabela de fusões nasais).
=====EVOLUÇÃO FONÉTICA==== =====EVOLUÇÃO ORTOGRÁFICA=====
##. LATINO > GL-PT > PORTUGUÊS LATINO > GL-PT > PORTUGUÊS
A1. /-a.nõ > -ã.o > -ãw̃/ ⟨manum > mão > mão⟩
A2. /-a.na > -ã.a > -ãː/ ⟨mattiana > maçãa > maçã⟩
O1. /-o.nõ > -õ.o > -õw̃/ ⟨bonum > bõo > bom⟩
O2. /-o.na > -õ.a > -o(w).a/ ⟨corona > corõa > coroa⟩
E1. /-e.nõ > -ẽ.o > -e(j).o/ ⟨frenum > frẽo > freio⟩
E2. /-e.na > -ẽ.a > -e(j).a/ ⟨sirena > serẽa > sereia⟩
I1. /-i.nõ > -ĩ.o > -ĩ.ɲo/ ⟨vinum > vĩo† > vinho⟩
I2. /-i.na > -ĩ.a > -ĩ.ɲa/ ⟨gallina > galĩa† > galinha⟩
U1. /-u.nõ > -ũ.u > -ũw̃/ ⟨unum > (h)ũu† > um⟩
U2. /-u.na > -ũ.a > -ũ.ma/ ⟨una > (h)ũa† > uma⟩
†Os artigos indefinidos podiam ser escritos com ou sem ⟨h⟩ (tanto ⟨ũu, ũa⟩ quanto ⟨hũu, hũa⟩); e ⟨vĩo⟩ também pode ser encontrado como ⟨vỹo⟩ ou ⟨vinno⟩, dependendo do local, período e autor.
Os casos Ux são interessantes pois são raras as palavras latinas terminadas em ⟨-unum, -una⟩, sendo o numeral/artigo o mais notável, onde tal transformação ocorreu. No galego-português, a palavra "ũa" era pronunciada como um hiato nasal; e, no português moderno, transformou-se em duas vogais intercaladas por uma consoante nasal ("uma"). Isso não é estranho pois nos casos Is também houve um hiato sendo intercalado por uma consoante: "galĩa > galinha".
Num primeiro estágio, no galego-português, criou-se os hiatos a partir da fusão e eliminação do /n/
latino que havia entre essas vogais:
- Nos casos Is ocorreu
/i.na > ĩ.a/
.
- Nos casos Us ocorreu
/u.na > ũ.a/
.
Num segundo estágio, ainda no galego-português, estes hiatos foram quebrados pela inserção de uma aproximante nasal com características fonéticas similares à vogal que inicia o hiato:
- Nos casos Is, a vogal
/i/
ocorre na posição palatal com os lábios abertos. Portanto, a aproximante nasal inserida é a palatal não-labializada /j̃/
: /ĩ.a > ĩ.j̃a/
. Uma das grafias de "galinha" deste período refletem a inserção da aproximante: ⟨galỹa⟩ e ⟨vỹo⟩, pois e o ⟨y⟩ sem til já era usado para representar a aproximante não-nasal (oral): ⟨rayz⟩ e ⟨fevreyro⟩.
- Nos casos Us, a vogal
/u/
ocorre na posição velar com os lábios arredondados. Portanto, a aproximante nasal inserida é a velar labializada /w̃/
: /ũ.a > ũ.w̃a/
.
Num terceiro estágio, já no português e galego modernos, as consoantes aproximantes inseridas anteriormente sofreram fortição, i.e., perderam a característica de aproximante e transformaram-se em oclusivas:
- Nos casos Is, o
/j̃/
transformou-se na consoante nasal oclusiva que ocorre no mesmo ponto de articulação, o /ɲ/
: /ĩ.j̃a > ĩ.ɲa/
.
- Nos casos Us, o
/w̃/
transformou-se na consoante nasal oclusiva que ocorre no mesmo ponto de articulação. O problema é que /w̃/
é uma consoante co-articulada, e ocorre em 2 pontos: o ponto labial (devido ao arredondamento dos lábios) e o ponto velar (onde a vogal /u/
era articulada). Portanto, a consoante nasal oclusiva que substituiu o /w̃/
poderia ser a labial /m/
ou a velar /ŋ/
. E de fato ambas alterações ocorreram: no português moderno ocorreu /ũ.w̃a > ũ.ma/
(uma) e no galego ocorreu /ũ.w̃a > ũ.ŋa/
(unha).
Em resumo, as transformações, do latino até o português moderno, desde a eliminação da consoante nasal até a criação duma outra consoante nasal foram:
/i.na > ĩ.a > ĩ.j̃a > ĩ.ɲa/
. Exemplo: ⟨gallina > galỹa > galinha⟩.
/u.na > ũ.a > ũ.w̃a > ũ.ma/
. Exemplo: ⟨una > (h)ũa > uma⟩.
Porém, apesar de o português moderno usar as consoantes oclusivas /m, ɲ/
, alguns dialetos e algumas línguas parentes do Galego-Português se mantêm nos estágios que precederam a fortização:
- Os dialetos brasileiros nordestino e da costa norte pronunciam ⟨-uma, -inha⟩ como
/-ũ(w̃)a, -ĩ(j̃)a/
(i.e., como hiato nasal ou vogais intercaladas por aproximante nasal). Eu, por exemplo, falo "ũa galĩa" em vez de "uma galinha". Ouça, neste Uma pra mim, uma pra tu do Luís Gonzada (YouTube), a pronúncia do artigo "ũa" (aos 1:13).
- O Mirandês possui como artigo feminino a forma em hiato, porem oral, ⟨ua⟩. Mas alguns dialetos possuem ⟨ũa⟩, conservando a nasalidade.
- A Fala da Estremadura (Espanha) também possui como artigo feminino ⟨ũa⟩, que é por vezes escrito ⟨un‑a⟩, com o hífen como artifício para forçar separação silábica, obrigando o /-n-/ a formar sílaba com o /u/ em vez de com o /a/.
Neste livro são discutidas a fusão nasal do latim para o galego-português, na página 16; e a alteração desses hiatos do galego-português para o português moderno, na página 26.