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É possível indicar com o pronome pessoal átono (me, lhe, etc.) quem é que o acto beneficia ou prejudica? Sei que com certos verbos (dar, fazer) o pronome pessoal átono já tem mais-ou-menos este significado. Mas pode ser usado de forma mais geral? Estou interessado em dois casos:

  1. Quando o efeito na pessoa referida é um motivo para o acto. Por exemplo:

    A criança apareceu com fome. A sua mãe cortou-lhe uma maçã.

    Estamos com calor! Quem pode abrir-nos uma janela?

  2. Quando o efeito existe, mas não é motivo. Por exemplo:

    Sujaste-me este lugar! (Porque não o quero sujo.)

    Eles vão a comer-nos toda a comida. (E assim não vamos comer nada.)

    Espero que o menino não me vá cortar o cabelo dele. (Porque gosto do seu cabelo grande.)

    Dá-me uma bolacha a ela, por favor. (Quero que ela tome a bolacha.)

Se não for possível na gramática formal, quero saber também se é usado de forma coloquial.

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  • 1
    Obrigado pela ajuda com a gramática na minha pergunta!
    – Dan Getz
    Commented Dec 14, 2015 at 17:52
  • Sempre às ordens.
    – Jacinto
    Commented Dec 14, 2015 at 17:55
  • 1
    Tens nesta pergunta outro exemplo do dativo de interesse: não me morras
    – Jacinto
    Commented Dec 15, 2015 at 19:22

2 Answers 2

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Sim tudo isso é formalmente correto, e tem até um nome: dativo de interesse. O pronome oblíquo átono (me, te, lhe, etc.), formalmente objeto indireto do verbo, indica precisamente quem é beneficiado ou prejudicado pela ação.

Uma construção idêntica é o dativo de posse:

(a) Sujaste-me a camisa. (Sujaste a minha camisa.)

(b) Já me estragaste o dia. (Estragaste o meu dia.)

(c) Morreu-lhe a mãe há três dias. (Morreu a mãe dele há três dias.)

Poder-se-ia argumentar que em todos estes casos a pessoa é também afetada pela ação, e que isso é até mais relevante do que a posse. Felizmente não temos que nos preocupar muito com isso, porque só o nome é que muda; a construção é a mesma.

Este dativo de interesse, sendo formalmente correto, é no entanto mais típico da linguagem informal.

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De facto, as tuas frases são todas (salvo uma) gramaticais, mas, com o Jacinto sugere, têm tipos distintos de clíticos. Vou desenvolver este ponto.

Dativo Ético

(1) Espero que o menino não me vá cortar o cabelo dele.
(2) ??Dá-me uma bolacha a ela, por favor.

A frase 2 parece-me de gramaticalidade muito duvidosa. O clítico me ocorre num local onde seria de esperar o argumento recetor de dar, mas continuando a frase percebemos que é a ela que tem esse papel. Nota que se removermos o clítico, a frase seria agramatical (pelo menos em Portugal, no Brasil é comum):

(2a) *Dá uma bolacha a ela, por favor.

Parece-me que a ela só poderia ocorrer naquela posição se estivesse a redobrar o clítico:

(2b) Dá-lhe uma bolacha a ela.

Mas adiante. Em (1) temos o dativo ético. Mateus et al. (2003: 840) descrevem-no como designando «o locutor, manifestando o seu interesse na realização da situação expressa pela frase». Segundo as autoras, ocorre tipicamente na primeira pessoa do singular, embora admitam que marginalmente possa ocorrer na primeira do plural. Miguel Duarte (2010: 394) admite também a segunda pessoa, como neste exemplo que dá:

(3) No Inverno, o vento sopra-te cá com uma força!

Segundo o autor, estes dativos «estabelecem uma relação entre a situação e um dos participantes no discurso e que remetem para um ouvinte real ou hipotético, ocorrendo tipicamente em frases avaliativas ou imperativas».

Uma propriedade que os permite destinguir dos outros dativos que referirei é o facto de não poderem ser realizados sob a forma de sintagma preposicional; em particular, não podem ocorrer em contextos de redobro de clítico:

(4) *Espero que o menino não me vá cortar o cabelo dele a mim.

Dativo Benefativo

(5) A criança apareceu com fome. A sua mãe cortou-lhe uma maçã.
(6) Estamos com calor! Quem pode abrir-nos uma janela?

Neste caso, estamos perante dativos benefativos, os quais designam a entidade beneficiada (ou prejudicada). Segundo Miguel (2010: 390), podem realizar-se como sintagma preposicional introduzido por a e, em alguns contextos, com para. É permitido o redobro de clítico («cortou-lhe uma maçã a ele», «abriu-nos uma janela a nós»).

Dativo de Posse

(7) Sujaste-me este lugar!1
(8) Eles vão a comer-nos toda a comida.

Aqui temos um dativo possessivo, o qual designa posse em sentido estrito. Sintaticamente, é muito semelhante ao dativo benefativo, mas pode co-ocorrer com mais tipos de verbos. Miguel (2010: 391) dá exemplos de frases ambíguas entre uma leitura possessiva e benefativa. Outra diferença é que o dativo de posse, quando realizado como sintagma preposicional, não pode ser encabeçado por para, apenas por por ou de. O redobro de clítico também é permitido: «vão comer-nos toda a nossa comida».


1Como o Jacinto menciona nos comentários, parece ser também possível uma interpretação de me como dativo ético.

Maria Mateus et al., 2003. Gramática da Língua Portuguesa (6ª edição, Lisboa: Editorial Caminho)
Matilde Miguel, Anabela Gonçalves e Inês Duarte, Inês. Dativos não Argumentais em Português. In Actas do XXV1 Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, 388-400. Lisboa: APL. Disponível online.

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  • Revê-me lá a tua frase inicial. Algumas das distinções que tu fazes são demasiado subtis para mim. Não faço distinção entre sujaste-me este lugar e abriste-me uma janela. Também não gosto muito de dá-me uma bolacha a ela, mas daí a ser agramatical. Não me parece que dá uma bolacha a ela seja agramatical.
    – Jacinto
    Commented Dec 16, 2015 at 11:10
  • @Jacinto Tens razão, o "sujaste-me" é de posse. Corrigi isso na resposta, mas não agrupei com "abre-nos", embora não tenha certeza de que esse caso é benefativo ("cortou-lhe uma maçã" parece um caso bem mais fácil). A diferença entre benefativo e de posse é de facto subtil (a gramática da irmandade nem sequer faz a distinção e fala apenas de dativo de posse). Vê também o artigo cujo link está na resposta -- tem exemplos de frases ambíguas. Quando a dá uma bolacha a ela ser gramatical... Discordo. Teria de ser dá-lhe uma bolacha. Vou tentar arranjar citações.
    – Artefacto
    Commented Dec 16, 2015 at 12:11
  • Vê-me mesmo a primeira frase: acho que falta lá qualquer coisa. Sujaste-me o lugar parece-me que pode ser tudo: se eu me ia lá sentar, prejudicaste-me (benefativo) e poder-se-ia dizer também sujaste o meu lugar; se o lugar não me pertence de modo algum, provavelmente ético; se eu o tivesse reservado para um amigo meu, não me parece que seja posse, mas é benefativo. Ético puro é coisa como olha-me para aquilo!. E se houver um ele e uma ela, dá uma bolacha a ela resolve a ambiguidade do lhe.
    – Jacinto
    Commented Dec 16, 2015 at 12:23
  • @Jacinto Qual primeira frase? «De facto, são todas salvo uma gramaticais, mas, com o Jacinto sugere, as tuas frases têm tipos distintos de clíticos.»? À parte de a frase ficar mais clara com "as tuas frases" na primeira oração, não vejo o problema.
    – Artefacto
    Commented Dec 16, 2015 at 12:30
  • @Jacinto Dificilmente vejo "sujaste-me o lugar" como ético. Parece-me ter exatamente o mesmo significado que "sujaste-lhe o lugar", o que é um argumento suficiente para dizer que não é ético (clítico da 3a pessoa). Por exemplo, Mateus dá esta como agramatical: Cala-lhe(s) essa boca, pois já não te pode(m) ouvir chorar! (comparando com o bem formado Cala-me essa boca, pois já não te posso ouvir chorar); teria de ser reformulada como imperativo diferido, com o dativo sendo de posse e portanto com redobro possível: Cala-lhe essa boca (a ele) pois já não o posso/o podemos ouvir chorar!
    – Artefacto
    Commented Dec 16, 2015 at 12:37

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