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Falo das irregularidades mais notórias na fala. Ignoro as variações meramente gráficas: reger, rejo; padecer, padeço, etc.. Ignoro também alternâncias entre a aberto e fechado, o pronunciado ó, ô ou u, e quase inaudível e aberto. Estas ocorrem também em palavras da mesma família: rapaz, rapaziada; garoto, garotada; mulher, mulherio, e tendem a ocorrer por razões meramente fonéticas, sobretudo a deslocação da sílaba tónica. Creio até que algumas destas alternâncias ocorrem só na pronúncia europeia e africana e não na brasileira

Agora na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (e consequentemente em todas as pessoas do presente do subjuntivo) tendem a ocorrer com mais frequência do que nas outras flexões irregularidades mais pronunciadas: a que passa a ai, mudança de consoante, e que passa a i. Seguem-se exemplos, com as irregularidades assinaladas:

Caber: caibo, cabes, cabe, cabemos, cabeis, cabem.
Saber: saibo, sabes, sabe, sabemos, sabeis, sabem (ter sabor).
Saber: sei, sabes, sabe, sabemos, sabeis, sabem (ter conhecimento).
Poder: posso, podes, pode, podemos, podeis, podem.
Pedir: peço, pedes, pede, pedimos, pedis, pedem.
Ouvir: ouço, ouves, ouve, ouvimos, ouvis, ouvem.
Fazer: faço, fazes, faz, fazemos, fazeis, fazem.
Trazer: trago, trazes, traz, trazemos, trazeis, trazem.
Dizer: digo, dizes, diz, dizemos, dizeis, dizem.
Perder: perco, perdes, perde, perdemos, perdeis, perdem.
Valer: valho, vales, vale, valemos, valeis, falem.
Sentir: sinto, sentes, sente, sentimos, sentis, sentem.
Mentir: minto, mentes, mente, mentimos, mentis, mentem.
Despir: dispo, despes, despe, despimos, despis, despem.
Vestir: visto, vestes, veste, vestimos, vestis, vestem.

Não incluí verbos monossilábicos, que tendem a apresentar irregularidades em mais pessoas. Com uma sílaba só, não poderia ser de outro modo.

Estou em crer que há aqui uma tendência clara, e deve haver uma razão qualquer para ela. Qual é então a explicação desta maior frequência no presente do indicativo de irregularidades na primeira pessoa do singular?

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  • 4
    O melhor artigo que eu encontrei (pois, em vinte minutos :) que explica tudo isso é Regularidade e irregularidade nos paradigmas flexionais, por Maria Luísa de Almeida. “Como se vê, ouço, peço e meço conservam até hoje a forma que apresentavam no português medieval...”
    – tchrist
    Nov 27, 2015 at 20:30
  • Vou ler. Amanhã, ou isso. Entretanto, tenho esperança que alguém me escreva uma resposta... não mais longa que a mais longa das minhas.
    – Jacinto
    Nov 27, 2015 at 21:54

1 Answer 1

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English

Irregularities that are otherwise inexplicable if considered synchronically can sometimes fall into recognizable patterns if instead looked at diachronically. This is true for the verbs you mention. These are important irregulars to learn because it is the first person singular of the present indicative that supplies the stem for the present subjunctive.

Mostly what happened to almost all of these cases which you mention is that Latin had not a simple -o in the first person singular for these verbs, but -eo or -io. The first of the two vowels became a semi-vowel /j/ and proceeded to change the previous consonant and sometimes even the preceding vowel. There was no /j/ in the other persons, and so the second and third person singulars, plus the plurals, did not suffer its effects.

Take for example a verb like dizer which gives us both digo and dizes. Latin had dico, dices; what happened to the c as the language evolved depended on the vowel following. Before /e, i/, it became /dz/ and finally /z/, but before /a, o, u/, it became voiced and therefore /g/. This provides the alternation between /g/ and /z/ which we see in digo, dizes and trago, trazes.

Verbs that had -eo or -io in the first personal singular in Latin passed through an evolutionary period of the weak vowel becoming a semi-vowel, sometimes triggering palatalization on the previous consonant, and at other times causing metathesis. This occurred only in the first person singular, not in the the other persons, as they did not have the weak vowel to mutate.

So with caber from Latin capere, the first personal singular was capio, which became cabjo and then caibo under metathesis. But cabes was under no such pressure. The same thing happened with saber from sapere by way of sapio.

With verbs like valho, tenho, venho, those started out as valeo, teneo, venio from valere, tenere, venire, and the weak vowel became a semi-vocalic /j/ before causing the previous /l/ or /n/ consonant to palatalize into /ʎ/ and /ɲ/. This pressure did not exist in the other persons.

With faço, ouço, peço, those were facio, audio, and a hypothesized *petio. The /i/ became /j/, and so on from /dj/ and /tj/ to /dz/ and /ts/ where they were affricates, and finally modern /s/. Without the “yod”, the other persons did not suffer this.

In cases like sinto, minto, durmo, visto from sentio, mentio, dormio, vestio, this time the /j/ caused the /e/ and /o/ in the stem of the original to move higher in the mouth, to /i/ and /u/ respectively.

Posso is a more complicated case. The Latin had possum for the first person, but potes in the second and potest in the third. Different Romance languages developed different forms for this: where Italian has io posso but tu puoi, Spanish has yo puedo and tu puedes with the characteristic diphthongization in Castilian verbs in stressed position.

With eu perco (but tu perdes), it appears that in the transition to Vulgar Latin and Proto-Romance, there existed a *perdeo form where Classical Latin had perdo. That should give rise not to perco but to perço, and I have not discovered what occurred in that case.

Although I understand why saber from sapere has two senses (to have flavor and to have acquaintance), I do not know why there are two first person forms in Portuguese; in Spanish they use yo sé for both senses of saber.

I am grateful for Maria Luísa de Almeida’s Regularidade e irregularidade nos paradigmas flexionais‌​ for many of these morphological insights.

Português

(O revisor assume a responsabilidade pelos erros de portugês.)

Irregularidades que são de outro modo inexplicáveis se consideradas sincronicamente, podem às vezes cair em padrões reconhecíveis diacronicamente. Isto é verdade para os verbos que mencionaste. Estas são formas importantes a aprender, porque é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo que nos dá o presente do subjuntivo.

O que aconteceu com quase todos esses casos que mencionaste foi principalmente que o latim não tinha um simples -o na primeira pessoa do singular para esses verbos, mas sim -eo ou -io. A primeira das duas vogais tornou-se uma semi-vogal /j/ e começou a mudar a consoante anterior e às vezes até mesmo a vogal anterior. Por falta de /j/ nas outras pessoas, elas não sofreram esses efeitos.

Tomemos por exemplo um verbo como dizer que nos dá tanto digo como dizes. O latim tinha dico, dices; o que aconteceu com o c à medida que a linguagem evoluiu dependeu da vogal seguinte. Antes de /e, i/, tornou-se /dz/ e, finalmente, /z/. Mas antes de /a, o, u /, vocalizou-se e portanto tornou-se /g/. Isso fornece a alternância entre /g/ e /z/ que vemos em digo, dizes e trago, trazes.

Os verbos que tinham -eo ou -io na primeira pessoa do singular passaram por um período evolutivo da vogal fraca em que esta se tornou em semi-vogal, às vezes provocando palatalização sobre a consoante anterior, e em outras vezes causando metátese. Isso ocorreu apenas na primeira pessoa do singular e não nas outras pessoas, já que estas não tinham a vogal fraca.

Assim em caber do latim capere, a primeira pessoa do singular era capio, que se tornou /cabjo/ e depois caibo por metátese. Mas cabes não estava sob tal pressão. A mesma coisa aconteceu com saber de sapere por meio de sapio.

Verbos como valho, tenho, venho eram originalmente valeo, teneo, venio de valere, tenere, venire, e a vogal fraca tornou-se uma semi-vogal /j/ antes de causar a consoante anterior /l/ ou /n/ a palatalizar em /ʎ/ ou /ɲ/. Esta pressão não existia nas outras pessoas.

Faço, ouço, peço eram facio, audio — e uma forma hipotética *petio. O /i/ tornou-se /j/, e assim /dj / e / tj / passaram a /dz/ e /ts/, tornando-se africados, e finalmente passaram ao nosso /s/ moderno. Sem o "yod", as formas das outras pessoas não sofreram isso.

Nos casos como sinto, minto, durmo, visto de sentio, mentio, dormio, vestio, desta vez o /j/ causou o /e/ e /o/ do original a subir na boca para /i/ e /u/ respectivamente.

Posso é um caso mais complicado. O latim teve possum na primeira pessoa, mas potes na segunda e potest na terceira. Diferentes línguas românicas desenvolveram diferentes formas para isso: onde a italiana tem io posso mas tu puoi, o castelhano tem yo puedo e tu puedes com a ditongação característica dos verbos castelhanos na sílaba tónica.

Com eu perco (mas tu perdes), parece que na transição para o latim vulgar e a língua proto-romance, existia uma forma *perdeo onde o latim clássico tinha perdo. Isso deveria dar origem a perço, não a perco, e não descobri o que aconteceu nesse caso.

Embora entenda por que saber de sapere tem dois sentidos (para ter sabor e ter conhecimento), não sei por que existem duas formas distintas da primeira pessoa no português (os espanhóis usam yo sé para ambos sentidos).

Obtive muitas destas percepções sobre morfologia graças ao artigo de Maria Luísa de Almeida, Regularidade e irregularidade nsa paradigmas flexionais

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  • Fantástico. Terei que ler de novo a uma hora mais acordada.
    – Jacinto
    Nov 28, 2015 at 6:52
  • O que me espanta é que audes (?) tenha passado a ouves.
    – Jacinto
    Nov 28, 2015 at 11:52
  • Possum, potes é complicado do ponto de vista das outras línguas românicas. O português ficou praticamente igual ao latim.
    – Jacinto
    Nov 28, 2015 at 14:15
  • @Jacinto O italiano herdou possiamo, possano (ou seja podemos, podem) sem derivar novas formas a partir do infinitivo como parece ter ocorrido no português. Entendo a evolução audio > ouço, mas não audis > ouves. O occitano medieval também tenha um v no seu audire > auvir onde a língua moderna tem ausir. Talvez o v será da forma do pretérito perfeito (audivi, audiviste no latim), mas não sei.
    – tchrist
    Nov 28, 2015 at 15:43
  • @Jacinto De Ciberdúvidas: “«aparecimento da fricativa [V] para o lugar do que outrora tinha sido [D]» — [d] latino parece passar a [v], como mostra AUDIRE > ouvir; mas não se pode esquecer que a evolução não foi asim tão simples (o ✳ indica formas conjecturais e não atestadas): AUDIRE ✳odir > oir > ouir > ouvir ” Então ouir tornou-se ouvir (por uma confusão do V por U na língua escrita??).
    – tchrist
    Nov 28, 2015 at 15:54

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