RESPOSTA CURTA
This is a heck of a troublesome question! Eis dois exemplos típicos de voz passiva analítica (VPA) e voz passiva sintética (VPS, nome mais usual do que voz passiva reflexa):
(VPA) Estas casas todas que estão a ver foram construídas na última década.
(VPS) Construíram-se trezentas mil casas na última década.
Nem todos os usos seguem este padrão, mas esta é a tendência. A VPA enfatiza o sujeito, e este está claramente definido (estas casas todas que estão a ver). A VPS dá mais ênfase ao verbo, e o sujeito oficial da frase (trezentas mil casas) não está tão claramente definido: nós não sabemos quais são essas casas. Mais ainda, tipicamente, os falantes nativos interpretam a VPS, não como voz passiva, mas sim como voz ativa com o sujeito não identificado: pessoas, empresas não identificadas construíram casas.
RESPOSTA LONGA
A chamada VPS, pode ser complicada até mesmo para os falantes nativos. A complicação resulta do seguinte: A gramática tradicional (GT), baseada em critérios formais e históricos, ensina a VPS como voz passiva, enquanto os falantes nativos entendem-na, na maioria dos casos, como voz ativa. Vamos primeiro à GT, para depois vermos uma maneira alternativa, mais simples, de entender as coisas.
Voz Passiva Sintética (VPS) na Gramática Tradicional
A voz passiva só é possível com verbos transitivos diretos, como beber: o objeto direto na voz ativa (VA), vinho no exemplo seguinte, passa a sujeito na voz passiva analítica (VPA) e na chamada voz passiva sintética (VPS):
(a – VA) Em Portugal, muita gente bebe vinho.
(b – VPA) Em Portugal, vinho é bebido (por muita gente).
(c – VPS) Em Portugal, bebe-se vinho.
Se o verbo admitir conjugações reflexas e não reflexas, a VPS é ambígua, como no teu exemplo “matou-se muita gente:” não se sabe se muita gente se matou a si mesma ou se foi morta por outras pessoas. A VPA não sofre dessa ambiguidade. Passa-se o mesmo com lembrar, que também admite conjugações reflexas e não reflexas. Com o carro não há problema, mas com uma pessoa é diferente. Por exemplo, “lembra-se o João” pode significar “o João é lembrado” (isto é, alguém pensa no João, a única possibilidade no caso do carro, ou alguém diz ao João para ele não se esquecer de alguma coisa) ou ainda “o João lembra-se (de alguma coisa)”.
Com verbos intransitivos ou transitivos indiretos a voz passiva não é possível. Mas existe um construção parecida com a VPS que é possível. Vejamos um exemplo com o verbo transitivo indireto gostar:
(d) Em Portugal, muita gente gosta de vinho.
(e) Em Portugal, gosta-se de vinho.
A frase (e) é uma construção com voz ativa: o sujeito está indeterminado (a palavra se designa-se por partícula indeterminante do sujeito) e vinho é objeto indireto. Significa mais ou menos o mesmo que (d): há pessoas em Portugal que gostam de vinho. As frases (c) e (e) são muito parecidas. Como podemos distinguir a VPS da VA com sujeito indeterminado se (VASI)? Temos duas maneiras. Se o verbo for transitivo direto, a frase é VPS; se for intransitivo ou transitivo indireto é VASI. A outra maneira é ver se é possível reescrever a frase como VPA: se for, como (c), que se pode reescrever como (b), a frase é VPS; se não for, como em (e) (não se pode dizer *vinho é gostado), a frase é VASI. Depois há ainda o plural. Em ambas as construções o verbo está na terceira pessoa. Mas na VPS, concorda em número com o sujeito oficial da frase; na VASI, fica sempre no singular:
(f – VPS) Em Portugal, bebem-se muitos vinhos diferentes.
(g – VASI) Em Portugal, gosta-se de muitos vinhos diferentes.
Compreende-se portanto que até os falantes nativos tenham dificuldades com a VPS e a VASI. Porquê bebem-se muitos vinhos e não bebe-se muito vinhos? E porquê gosta-se de muitos vinhos e não gostam-se de muitos vinhos A resposta da gramática tradicional é que vinhos é sujeito em (f), logo bebem-se porque o verbo concorda com vinhos; e é objeto indireto em (g), logo o verbo não tem que concordar com vinhos.
Compreensão Intuitiva da Chamada Voz Passiva Sintética
Só que a classificação da GT é meramente formal, e não é assim que os falantes entendem estas frases. Isso torna-se mais óbvio se pusermos alguns dos exemplos acima lado a lado:
Em Portugal, (e) gosta-se de vinho, (c) bebe-se vinho.
Para o falante nativo, vinho não é sujeito em (c) e objeto em (e), como diz a GT: é objeto em ambas; ambas as frases estão na voz ativa, e em ambas o sujeito está indeterminado. É como dizer em inglês, “In Portugal, people like wine, people drink wine”, em que o sujeito, people, também está indeterminado. Do mesmo modo:
Foi um belo dia: (f1) foi-se à praia, (f2) tomou-se um banho, (f3) comeu-se uma sardinhada, (f4) falou-se das últimas novidades.
Na GT, (f1) é VASI; (f2) é VPS com sujeito um banho; (f3) é também VPS com sujeito uma sardinhada; e (f4) é de novo VASI. Mas o falante nativo imagina o mesmo sujeito indeterminado em todas as orações: um grupo de pessoas (em que quase de certeza ele se inclui) que foi à praia e fez todas aquelas coisas. Depois no plural, por causa da artificialidade da distinção entre VPS e VASI, muitos falantes nativos não se importam de dizer coisas como:
Foi um belo dia: (g1) foi-se à praia; (g2) deu-se uns mergulhos; (g3) comeu-se umas sardinhas; (g4) falou-se das últimas novidades.
De acordo com a GT, (g4) está correta, mas (g2) e (g3) estão erradas. A GT prescreve:
Foi um belo dia: (g1) foi-se à praia; (g2a) deram-se uns mergulhos; (g3a) comeram-se umas sardinhas; (g4) falou-se das últimas novidades.
É claro que isto não entra bem nem mesmo na cabeça do falante nativo, e já motivou esta questão sobre vende-se casas ou vendem-se casas.
Apesar de oficialmente na GT mergulhos e sardinhas serem os sujeitos das respetivas orações, eles aprecem depois do verbo, que é uma posição pouco comum para um sujeito no português (na intuição, eles são objetos diretos, e estão na posição normal). E frequentemente não é possível colocá-los antes do verbo: “mergulhos deram-se” sugere que os mergulhos se ofereceram a alguém; “sardinhas comeram-se” sugere que as sardinhas se canibalizaram. É esta posição adiantada do verbo na VPS/VASI que enfatiza o verbo. Portanto a escolha entre VPS e VPA (a VPA não é alternativa à VASI) depende do que se quer enfatizar. Por exemplo na frase anterior poder-se-ia reescrever as orações VPS como VPA:
Foi um belo dia: (g1) foi-se à praia; (g2b) uns mergulhos foram dados; (g3b) umas sardinhas foram comidas; (g4) falou-se das últimas novidades.
Mas (g2b) e (g3b), soam estranhíssimos, tal como soariam em inglês “a few dives were made, a few sardines were eaten.” A tradução mais natural seria com voz ativa: “we had a few dives and ate sardines,” ou talvez “one had a few dives and ate sardines,” porque o que se quer realçar é que alguém (oficialmente não identificado, mas neste exemplo compreende-se quem é) se divertiu a dar mergulhos e a comer sardinhas. O exemplo (b) acima, vinho é bebido, tal como “wine is drunk in Portugal,” também é estranho, enquanto as versões (a) e (c), que realçam a ação, são mais naturais. A tradução mais natural de (c) é “people drink wine in Portugal.”
Existem construções VPA perfeitamente naturais com mergulhos e sardinhas, em que se quer realçar os mergulhos e as sardinhas. As versões VPS correspondentes normalmente não são naturais.
(h1) Este mergulho foi executado na perfeição; (h2) (nada natural) executou-se este mergulho na perfeição.
(i1) A sardinhada foi muito elogiada; (i2) (natural, mas menos que a VPA) elogiou-se muito a sardinhada.
(j1) Estes vinhos foram produzidos na nossa quinta; (j2) (pouco natural) produziram-se estes vinhos na nossa quinta.
(k1) Estas casas foram construídas em 2005; (k2) (pouco natural) Construíram-se estas casas em 2005.
Eu esperaria ouvir (h1) numa competição de mergulho. (h2) não é natural: ou se diz, “o atleta executou o mergulho na perfeição” ou se vai para a VPA. (i1) e (i2) são ambas naturais, com (i2) a pôr mais ênfase na ação e no próprio sujeito indeterminado. Já no teu exemplo 1, as duas versões são equivalentes. “Não se vê” soa bem apesar de o verbo vir depois do “comportamento.” Não sei explicar porquê. Talvez por “ver-se” ser relativamente idiomático e ser interpretado como existe.
(1a) Este tipo de comportamento não é visto em toda a terra; (1b) este tipo de comportamento não se vê em toda a terra.
Ambas são interpretadas como “este tipo de comportamento não existe em toda a terra.” Mas se anteciparmos o verbo, o que é mais natural na VPS que na VPA, a ênfase passe para o verbo: “não se vê este tipo de comportamento (…);” o que pode ser interpretado como “não temos oportunidade de ver este tipo de comportamento em toda a terra.” Nos teus exemplos (2), a VPA põe o foco nas palavras independentemente de quem as disse. A VPS, eu só a usaria se as palavras não tivessem sido ditos diretamente a nós; caso contrário diria, “disseram-nos essas palavras…” que é voz ativa, mas com o sujeito omisso.
Andei a ver o uso da VPA e VPS neste Corpus do Português, e há uma tendência para se usar a VPA quando o sujeito está bem identificado, tipicamente incluindo artigo definido, e o foco da atenção está no sujeito:
(l) O carro foi encontrado abandonado numa rua em Botafogo. (Luiz Alfredo Garcia-Roza, O Silêncio da Chuva, 1996.)
(m) O prédio foi construído em 1795 por escravos e ocupado mais tarde pelo general Bento Gonçalves e por Garibaldi. (Litoral e Interior têm programas, 16-4-1997)
(n) O Museu de História Natural e o Museu de História da Arte de Viena foram construídos na cidade de Viena, no estilo da Renascença Italiana, sob a direção dos arquitetos Carl Hasenauer e Gottfried Semper, tendo sido concluída a construção em 1881. (Enc.)
Seria possível usar a VPS nestas frases. Em (l) o sentido não altera, mas seria menos natural usar a VPS. Em (m) a VPS exigiria substituir “por escravos” (o agente da passiva que a VPS modernamente não tem) por “com trabalho escravo,” mas o sentido alterava-se: a ênfase iria para a construção, por exemplo, “construiu-se o prédio com trabalho escravo” por oposição a “com trabalho livre”. Em (n) a VPS também alteraria o sentido, mudando o foco para a construção, e o facto de ela ter sido feita em Viena e não noutro sítio.
Já com a VPS, o sujeito, na ótica da GT ou objeto direto na intuição, é menos bem individualizado. O foco está na atividade. Incluo também um caso VASI.
(o) [E]m São Paulo comeu-se muito pão de trigo da terra. (Júlio Ribeiro, A Carne)
(p) Bebeu-se champagne, à saúde das damas (Fialho d’Almeida, A Cidade do Vício, 1943.)
(q) Portanto comeu-se e bebeu-se (VASI) até alta noite. (Joaquim Manuel de Macedo, Os Dois Amores)
Se mudássemos a VPS em (o) para VPA o sentido alterava-se: em vez de o foco estar no que se come em São Paulo, passaria a estar no pão de trigo da terra (que era comido em São Paulo por oposição a ser comido noutro sítio. Em (p) a VPA seria muito estranha: com a VPA seria “o champagne foi bebido,” e estaríamos a explicar o que aconteceu ao champagne em vez focar no que as pessoas (não identificadas) fizeram. Em (q) a VPA é impossível.
Os dois exemplos seguintes de VPS são um pouco diferentes
(r) Os segredos fizeram-se para ser contados. (João Rio, Dentro da Noite, 1910)
(s) Peço-te o obséquio especial de não frequentares a janela. As janelas fizeram-se para alumiar as casas, e arejá-las, não se fizeram para ter senhoras penduradas. (Ramalho Ortigão, Cartas a Emília, 1888.)
Não é óbvio para mim que os sujeitos oficiais da VPS sejam neste caso interpretados intuitivamente como objetos diretos feitos por um sujeito não identificado, ao contrário de todos os exemplos de VPS que vimos até agora. Outra possibilidade é entendermos que os segredos e as janelas metaforicamente se fizeram a si mesmos. Mas também não estou certo disto. Talvez o melhor seja interpretar X fez-se para como uma expressão idiomática com o significado de a função de X é. Note-se que, inusitadamente, os segredos e as janelas precedem o verbo. Nestes casos a VPA teria exatamente o mesmo significado que a VPS.