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Ordinário continua a ter alguns dos significados da sua origem latina ordinarius: comum, habitual (e.g. reunião ordinária). Mas é hoje talvez mais frequentemente usado com o significado de bera, mau caráter, indecoroso e outras coisas pouco edificantes. Por exemplo, vinho ordinário, homem ordinário.

Esta evolução não se deu, por exemplo, no inglês, francês ou espanhol. O pior que os cognatos de ordinário significam nestas línguas é não se distinguir por qualidade ou nobreza acima do comum, o que está muito longe de ser mau. Por exemplo, um vino ordinario em espanhol é segundo este site um vinho comum, sem qualidades específicas ou defeitos destacáveis. Este site distingue entre vin ordinaire de mauvais vin. E uma busca no google revela que hombre ordinario, homme ordinaire ou ordinary man significam apenas homem comum.

Quando então é que ordinário adquiriu o significado pejorativo?

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    Ordinário significa também banal ou comum. Não sei quando é que teve início o significado de mau. Nov 4, 2015 at 15:05

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Andei a ver o uso da palavra ordinário neste Corpus do Português e em mais algumas obras disponíveis online, e só na segunda metade do século XIX é que a palavra aparece indubitavelmente com o significado de ruim, de má qualidade, vil. Isto acontece sobretudo nas obras de autores brasileiros, como Bruno Seabra (1837-76), França Junior (1938-90) e Aluísio Azevedo (1857-1913); mas ordinário mantém o sentido tradicional de comum em vários dos seus contemporâneos brasileiros e portugueses, como José de Alencar (1829-77), Machado de Assis (1839-1908), Júlio Diniz (1839-71) e Eça de Queiroz (1845-1900). No século XX o significado de comum mantém-se praticamente apenas em contextos específicos: acionista ordinário, processo ordinário.

Em paralelo com alteração do significado de ordinário, o uso de ordinariamente e de ordinário, com o significado de normalmente, habitualmente, muito comum até ao século XIX, cai a pique no século XX, sendo aparentemente substituído por normalmente, que até então pouco se usara.

Frequência de alguns advérbios/locuções adverbiais no Corpus do Português

Século                           XVIII    XIX     XX
Ordinariamente, ordinàriamente    168     438      18
De ordinário, de ordinario         77     219      36
Normalmente                         0      12    1760
Habitualmente                       0      35     347
Comumente, comummente              53      14     170

Eis dois exemplos do uso de de ordinário e ordinariamente:

Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. (Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, 1875.)

Eis a razão por que se escolhem de ordinário as tardes e as noites de sábado para os casamentos, batizados, bailes, concertos, espetáculos, enfim para tudo quanto é regozijo. (Bernardo Guimarães, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, 1872.)

No século XX, ordinariamente e de ordinário não acompanharam a evolução do significado de ordinário. Todas as ocorrências exceto uma (em que ordinariamente vestida significa mal vestida) mantêm o significado tradicional de normalmente. Aparentemente, como ordináro deixou geralmente de significar normal as pessoas deixaram de usar ordinariamente.

Vejamos agora alguns exemplos da evolução do significado de ordinário. Até meados do século XIX, no Corpus do Português, ordinário significa simplesmente comum, normal ou banal:

Aqui houve estes dias alguns casamentos e divórcios, mas isto é tão ordinário que não merece título de novas. (J. Cunha Brochado, Cartas, 1707.)

Notey na Sè da Cidade de Compostella em Galliza, que a imagem de Santiago, que em meyo corpo està no Altar mayor, representa homem quasi agigantado; disseraõ-me, que de tempo muyto antigo era daquelle modo, & he verosimil que se faria representando a estatura do Santo, ou a de qualquer homem ordinário daquelle tempo. (Antonio de Sousa de Macedo, Eva e Ave ou Maria Triunfante, 1734)

Um pai em Portugal que tem três filhos, bomem ordinário mas cidadao (oficial, por exemplo, ou que tem cem mil reis de renda da sua vinha, olival e jardim) (António Nunes Ribeiro Sanches, Cartas sobre a educação da mocidade, 1760)

1075 — Ordinariamente o desejo, plano e execução da vingança, incomodam e abalam mais os nossos espíritos do que as injúrias e ofensas recebidas. 1076 — O amor-próprio dos poetas e pintores é sobremaneira irritável; não se contentam com um desagravo ordinário, procuram imortalizar a sua vingança própria. (Mariano José Pereira da Fonseca Maricá, 1773-1848, Máximas, pensamentos e reflexões, 1837-41.)

No seu poiso ordinário ao pé da porta da casa Joaninha com os olhos estendidos, a velha com os ouvidos alerta, devoravam o espaço na direcção de nascente (Almeida Garrett, 1799-1854, Viagens na Minha Terra, 1843.)

Ainda se encontra este uso na segunda metade do século XIX:

E o casamento faz-se, e tudo entra no caminho ordinário, e eu mesmo me hei-de habituar. (Júlio Diniz, 1839-71, Fidalgos da Casa Mourisca, 1871.)

Demais, subsídio não é vencimento no sentido ordinário: pro labore. (Machado de Assis, 1839-1908, Balas de Estado, 1883-6.)

[Q]ualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre (…) Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel. (Machado de Assis, 1839-1908, Linha Reta e Linha Curva, 1870)

Na segunda metade do século XIX aparece ordinário com sentido claramente pejorativo e sem o sentido de comum ou normal:

O homem, mal acabou de ouvir a proposta, folheou um almanaque de defeitos contra o cavalo, rematando por declarar-me que nascera entre cavalos, que com eles tratara até aquela hora, e que, enfim, tomasse-lhe o diabo conta da alma, se não era o meu cavalo o mais ordinário alazão que ele tinha conhecido. (Bruno Seabra, 1837-76, Paulo, 1862.)

MARIA — Em todas as empresas em que te meteste tens dado com os burros n' água. Logo que nos casamos montaste uma grande fábrica de papel. MANUEL — E não era uma boa idéia? MARIA — Segundo os teus cálculos; mas o papel que fizeste foi tão ordinário que nem para embrulho o quiseram. (França Junior, 1838-90, As Doutoras, 1899.)

Noutras passagens, ordinário tem o sentido de qualidade inferior mas por contraposição a refinado e parece manter também o sentido de comum. Isto sugere a via para a evolução do significado. A minoria abastada e refinada considerava o comum como mau.

Ela, com quem já não iam os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, desejou comer do bocado dos trabalhadores, beber do seu vinho ordinário e palestrar com eles, (Aluísio Azevedo, 1857-1913, Mistério da Tijuca ou Girândola de Amores, 1882.)

[S]ustada a sua influência na arte, ficarão as questões à mercê das instintividades desordenadas da turba, que assim achará tudo mau ou tudo bom, conforme lhes bata ou não bata o coração. Desta sorte acontece que os actores portugueses sejam quase todos feitos pelo público ordinário, que os ensaia a tirante das suas apetências grosseiras, tornando-os em meros figurinos duma sensiblerie d' ocasião. (Fialho de Almeida, 1857-1911, Os Gatos, 1889-94.)

Mas o mesmo autor que fala negativamente do «público ordinário» é capaz de usar ordinário no sentido tradicional, ainda que mesmo assim tenha uma conotação de indesejável:

Um rico viticultor do Ribatejo um dia disse-me: — Não quero que meu filho seja um homem ordinário, como eu. (Fialho de Almeida, 1857-1911, Os Gatos, 1889-94.)

É também na segunda metade do século XIX que se passa a encontrar na literatura ordinário como insulto:

Mas, você é muito ordinário! exclamou ela com os dentes cerrados. — Podes bramar à vontade! — Um canalha! um valdevinos! um gatuno! — Dize o que quiseres! (Aluísio Azevedo, 1857-1913, A Condessa Vésper, 1882.)

— Deixa-me ver o que quer de mim este cabra.. rosnou ele. — Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo (Aluísio Azevedo, 1857-1913, O Cortiço, 1890.)

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  • A mim não me espanta nada que tivesse acontecido, nessa altura, o "ser comum", era desde logo pejorativo para a alta sociedade. Presumo que tenha vindo dai...
    – Jorge B.
    Jan 11, 2016 at 11:30
  • 1
    @JorgeB. Também não me espanta. Mas também não era previsível. Desde tempos imemoriais que uma minoria era riquíssima por comparação da maioria. Já na Roma antiga, e mesmo antes. Porque é que aconteceu no século XIX. E porquê só português e não no espanhol e francês?
    – Jacinto
    Jan 11, 2016 at 11:34
  • isso é uma boa pergunta que por acaso já fizeste, mas não sei como responder.
    – Jorge B.
    Jan 11, 2016 at 11:50
  • 2
    @JorgeB. Nem sei se seria possível responder. E se for, exigiria um livro inteiro. Foi por isso que a minha pergunta foi só, quando é que aconteceu? E mesmo assim deu trabalho.
    – Jacinto
    Jan 11, 2016 at 11:52
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Quando as diferenças financeiras passaram a ser exorbitantes, quando começou a haver meios de comunicação mais eficientes, onde qualquer coisa de mau que aconteça era espalhado massivamente, o que se tornou comum ouvir noticias ruins, onde 1% da população tem bastante riqueza, e a maioria não. Visto que a palavra comum, pode ser visto como algo que existe bastante. No caso de produtos, quando se refere que um produto é comum, quer dizer que é bastante usado, logo, tem que ser barato, visto que a maioria das pessoas não tem um poder financeiro elevado, e o conceito de coisa barata é quase o mesmo dizer que é ruim (isto não é sempre necessariamente verdade). Moral: Comum = barato = mau.

E nas pessoas, chamar uma pessoa de ordinário no Português do Brasil é o mesmo de dizer que não é uma boa pessoa. Pela mesma questão. É quase o mesmo que dizer "Homem ordinário" ou "Homem é tudo igual". É uma generalização, visto que cada vez mais pessoas são más, ser mau já é comum.

No jornal é mais comum ouvir coisas ruins que boas, na televisão é mais comum ver coisas ruins que boas. E a transformação dessa palavra foi simplesmente uma generalização.

Está é minha reflexão sobre a pergunta questionada, apenas minha opinião. Gostaria muito de debater sobre este assunto.

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  • 1
    Concordo que ordinário passasse a significar ruim desse modo: de coisa não particularmente acima da média passou a coisa abaixo da média, e progressivamente até coisa ruim. Mas diferenças exorbitantes de riqueza já existem há milénios. Existiam no império romano e continuaram a existir na Europa até hoje. No entanto no latim ordinarius não significava ruim. E noutras línguas europeias, ordinario, ordinnaire, ordinary nunca passaram a significar ruim. E comum também não siginifca ruim. Portanto ordinário não passou a significar ruim quando apareceram diferenças de riqueza.
    – Jacinto
    Nov 5, 2015 at 11:04
  • Homem e homem comum não são nem de perto nem de longe a mesma coisa que homem ordinário. Decididamente não em Portugal, e duvido muito que o sejam no Brasil: parece-me que estás com uma visão muito negativa das coisas. De qualquer maneira, não é de agora que o homem ordinário significa homem ruim.
    – Jacinto
    Nov 5, 2015 at 11:08
  • Bem, eu dei uma editada para explicar melhor, Portugal foi fundado em 1139, e o Português começou a surgir. E Roma foi fundada em 753 a.C. Então a linguá Portuguesa pode ser considerada uma língua mais recente. E penso que é uma das únicas que da o significado assim. Más fora isso, comum se tornou ruim porque é a verdade. Pelos simples fatos: No jornal é mais comum ouvir coisas ruins que boas, na televisão é mais comum ver coisas ruins que boas. E a transformação dessa palavra foi simplesmente uma generalização. Na minha opnião. Nov 5, 2015 at 11:18

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