Andei a ver o uso da palavra ordinário neste Corpus do Português e em mais algumas obras disponíveis online, e só na segunda metade do século XIX é que a palavra aparece indubitavelmente com o significado de ruim, de má qualidade, vil. Isto acontece sobretudo nas obras de autores brasileiros, como Bruno Seabra (1837-76), França Junior (1938-90) e Aluísio Azevedo (1857-1913); mas ordinário mantém o sentido tradicional de comum em vários dos seus contemporâneos brasileiros e portugueses, como José de Alencar (1829-77), Machado de Assis (1839-1908), Júlio Diniz (1839-71) e Eça de Queiroz (1845-1900). No século XX o significado de comum mantém-se praticamente apenas em contextos específicos: acionista ordinário, processo ordinário.
Em paralelo com alteração do significado de ordinário, o uso de ordinariamente e de ordinário, com o significado de normalmente, habitualmente, muito comum até ao século XIX, cai a pique no século XX, sendo aparentemente substituído por normalmente, que até então pouco se usara.
Frequência de alguns advérbios/locuções adverbiais no Corpus do Português
Século XVIII XIX XX
Ordinariamente, ordinàriamente 168 438 18
De ordinário, de ordinario 77 219 36
Normalmente 0 12 1760
Habitualmente 0 35 347
Comumente, comummente 53 14 170
Eis dois exemplos do uso de de ordinário e ordinariamente:
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. (Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, 1875.)
Eis a razão por que se escolhem de ordinário as tardes e as noites de sábado para os casamentos, batizados, bailes, concertos, espetáculos, enfim para tudo quanto é regozijo. (Bernardo Guimarães, Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, 1872.)
No século XX, ordinariamente e de ordinário não acompanharam a evolução do significado de ordinário. Todas as ocorrências exceto uma (em que ordinariamente vestida significa mal vestida) mantêm o significado tradicional de normalmente. Aparentemente, como ordináro deixou geralmente de significar normal as pessoas deixaram de usar ordinariamente.
Vejamos agora alguns exemplos da evolução do significado de ordinário. Até meados do século XIX, no Corpus do Português, ordinário significa simplesmente comum, normal ou banal:
Aqui houve estes dias alguns casamentos e divórcios, mas isto é tão ordinário que não merece título de novas. (J. Cunha Brochado, Cartas, 1707.)
Notey na Sè da Cidade de Compostella em Galliza, que a imagem de Santiago, que em meyo corpo està no Altar mayor, representa homem quasi agigantado; disseraõ-me, que de tempo muyto antigo era daquelle modo, & he verosimil que se faria representando a estatura do Santo, ou a de qualquer homem ordinário daquelle tempo. (Antonio de Sousa de Macedo, Eva e Ave ou Maria Triunfante, 1734)
Um pai em Portugal que tem três filhos, bomem ordinário mas cidadao (oficial, por exemplo, ou que tem cem mil reis de renda da sua vinha, olival e jardim) (António Nunes Ribeiro Sanches, Cartas sobre a educação da mocidade, 1760)
1075 — Ordinariamente o desejo, plano e execução da vingança, incomodam e abalam mais os nossos espíritos do que as injúrias e ofensas recebidas. 1076 — O amor-próprio dos poetas e pintores é sobremaneira irritável; não se contentam com um desagravo ordinário, procuram imortalizar a sua vingança própria. (Mariano José Pereira da Fonseca Maricá, 1773-1848, Máximas, pensamentos e reflexões, 1837-41.)
No seu poiso ordinário ao pé da porta da casa Joaninha com os olhos estendidos, a velha com os ouvidos alerta, devoravam o espaço na direcção de nascente (Almeida Garrett, 1799-1854, Viagens na Minha Terra, 1843.)
Ainda se encontra este uso na segunda metade do século XIX:
E o casamento faz-se, e tudo entra no caminho ordinário, e eu mesmo me hei-de habituar. (Júlio Diniz, 1839-71, Fidalgos da Casa Mourisca, 1871.)
Demais, subsídio não é vencimento no sentido ordinário: pro labore. (Machado de Assis, 1839-1908, Balas de Estado, 1883-6.)
[Q]ualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre (…) Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel. (Machado de Assis, 1839-1908, Linha Reta e Linha Curva, 1870)
Na segunda metade do século XIX aparece ordinário com sentido claramente pejorativo e sem o sentido de comum ou normal:
O homem, mal acabou de ouvir a proposta, folheou um almanaque de defeitos contra o cavalo, rematando por declarar-me que nascera entre cavalos, que com eles tratara até aquela hora, e que, enfim, tomasse-lhe o diabo conta da alma, se não era o meu cavalo o mais ordinário alazão que ele tinha conhecido. (Bruno Seabra, 1837-76, Paulo, 1862.)
MARIA — Em todas as empresas em que te meteste tens dado com os burros n' água. Logo que nos casamos montaste uma grande fábrica de papel. MANUEL — E não era uma boa idéia? MARIA — Segundo os teus cálculos; mas o papel que fizeste foi tão ordinário que nem para embrulho o quiseram. (França Junior, 1838-90, As Doutoras, 1899.)
Noutras passagens, ordinário tem o sentido de qualidade inferior mas por contraposição a refinado e parece manter também o sentido de comum. Isto sugere a via para a evolução do significado. A minoria abastada e refinada considerava o comum como mau.
Ela, com quem já não iam os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, desejou comer do bocado dos trabalhadores, beber do seu vinho ordinário e palestrar com eles, (Aluísio Azevedo, 1857-1913, Mistério da Tijuca ou Girândola de Amores, 1882.)
[S]ustada a sua influência na arte, ficarão as questões à mercê das instintividades desordenadas da turba, que assim achará tudo mau ou tudo bom, conforme lhes bata ou não bata o coração. Desta sorte acontece que os actores portugueses sejam quase todos feitos pelo público ordinário, que os ensaia a tirante das suas apetências grosseiras, tornando-os em meros figurinos duma sensiblerie d' ocasião. (Fialho de Almeida, 1857-1911, Os Gatos, 1889-94.)
Mas o mesmo autor que fala negativamente do «público ordinário» é capaz de usar ordinário no sentido tradicional, ainda que mesmo assim tenha uma conotação de indesejável:
Um rico viticultor do Ribatejo um dia disse-me: — Não quero que meu filho seja um homem ordinário, como eu. (Fialho de Almeida, 1857-1911, Os Gatos, 1889-94.)
É também na segunda metade do século XIX que se passa a encontrar na literatura ordinário como insulto:
Mas, você é muito ordinário! exclamou ela com os dentes cerrados. — Podes bramar à vontade! — Um canalha! um valdevinos! um gatuno! — Dize o que quiseres! (Aluísio Azevedo, 1857-1913, A Condessa Vésper, 1882.)
— Deixa-me ver o que quer de mim este cabra.. rosnou ele. — Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo (Aluísio Azevedo, 1857-1913, O Cortiço, 1890.)