Ofereci aqui uma bounty, e ninguém pegou na pergunta, de maneira que segui a dica do Rui Fonseca acima, e bingo: nos séculos XIII e XIV era gaanho e gaanhar. Obviamente a sequência aa fundiu-se num único a (uma crase), e, explica o este artigo no Ciberdúvidas, o a que resulta da crase de dois aa tende em sotaques comuns em Portugal a manter timbre aberto, mesmo em posições em que esperaríamos timbre fechado. O mesmo acontece com o o resultante da crase de dois oo (mantém timbre aberto em vez de reduzir para [u] e com o e resultante de dois ee (mantém timbre aberto em vez de reduzir para [ɨ] ou desaparecer). Estas vogais duplas resultaram tipicamente do desaparecimento de certas consoantes que no latim havia entre elas, mais comumente o l e o n, mas também o d e o g.
O Ciberdúvidas apresenta o exemplo de gaanhar > ganhar e ainda os seguintes (as explicações são minhas, baseadas no que lá está):
Caveira vem de caaveira no português antigo, que vem do latim calavaria. O l intervocálico caiu, fenómeno comum na evolução do latim para o português, deixando dois aa com hiato entre eles, até que se fundiram num só. Aquele primeiro a de caveira tem timbre aberto, contrastando com o timbre fechado típico da posição pretónica, como o primeiro a de craveira, ladeira, alheira, braseira.
Aveiro < Aaveiro < Alaveiro. É uma cidade portuguesa, um caso parecidíssimo com o de caveira.
Corado < coorado no português antigo < colorado no latim. Mesmo fenómeno evolutivo de caveira. O o inicial de corado é aberto, enquanto naquela posição, pretónica, é normalmente reduzido a [u], como em adorado, rosado, colado.
Pregar (um sermão; não um prego) < preegar < praedicare. O e é aberto, enquanto naquela posição se reduz normalmente para [ɨ] ou é elidido completamente, como em pregar (um prego), regar, vedar, levar.
Esquecer < esqueecer < escaecer < *excaedescer. O e inicial aberto contrasta com a redução para [ɨ] ou elisão, como em perecer, receber, meter.
Depois fui ao dicionário Houaiss (Lisboa, 2002), que indica formas antigas das palavras, ver outras palavras com timbres aberto “anómalos”, e não falha (a formas intermédias entre o português moderno e o latim são as registadas no Houaiss, todas de entre os séculos XIII e XV):
Padeiro < paadeiro < pada (pequeno pão) +-eiro; Por sua vez, pada < latim panata.
Sadio < saadya < sanativus
Vadio < vaadios, uaadios < vagativus
Pegada (marca deixada pelo pé) < peegadas < pedicata. No português antigo temos também pees (pés) do latim pedis; agora percebo porque é o meu pai dizia péis em vez de pés (ele não era brasileiro). Ao contrário do e aberto de pegada (do pé), o e de pegada de pegar reduz-se a [ɨ].
Geração < geeraçõ, geeraçom < generatio,onis. O mesmo com gerador < geerador, jeerador < generator. Mas também temos no português antigo geerar e geeral, mas no moderno o e é reduzido: g[ɨ]rar e g[ɨ]ral.
E nem os sobrenomes escapam. Temos o primeiro a “anomalamente” aberto em Tavares e Taveira, e basta ir ao Google Books para encontrarmos Taavares e Taaveira. O filólogo José Leite Vasconcellos diz que há registo de Thalavares e presume que tenha havido Talaveira (Lições de Filologia Portuguesa, 1911, e outra página de uma edição de 1926).
Esta coisa de a crase abrir o timbre observa-se presentemente no sotaque de Portugal. A preposição a e o artigo definido a têm timbre fechado em Portugal, mas a crase deles, à, tem timbre aberto. O mesmo acontece com as crases (não assinaladas graficamente) resultantes do encadeamento de palavras na fala: por exemplo, os aa de bola e azul têm em Portugal timbre fechado quando as palavras são pronunciadas isoladas, mas bola azul é pronunciado como bolazul com o a com timbre abeto.