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Em Portugal, muitas pessoas, entre as quais eu me incluo, pronunciam aberto o á de ganho; como em já; ou /'gaɲu/ em alfabeto fonético internacional (AFI; podem ver a chave aqui). Mas há pessoas em Portugal que o pronunciam fechado, como em sopa, ou /'gɐɲu/ em AFI. Na verdade eu só reparei nesta segunda pronúncia recentemente, e até a estranho. Mas devo ter andado muito distraído: hoje almocei com um colega de há uma data de anos, e ele pronuncia /'gɐɲu/, com o á fechado. A Infopédia regista as duas pronúncias; o dicionário da Academias das Ciências de Lisboa (2001), só a minha. Estas duas pronúncias estendem-se ao á correspondente da família ganhar.

Agora, o que me faz espécie que, ao contrário de ganho, banho eu pronuncio /'bɐɲu/, com o á fechado; e o mesmo com o á de palavras semelhantes: anho, banho, lanho, ranho, etc. Os dicionários concordam: para estas outras palavras só indicam a pronúncia com á fechado. Tirando as palavras da família de ganhar, não me lembro de nenhum outro caso do á de -anh-, tónico ou não, pronunciado aberto.

Então a minha pergunta é: existe alguma explicação inteligível para o que parece ser a pronúncia excecional de ganho e família?

Nota: parece-me que esta questão não se coloca no Brasil, mas os colegas brasileiros me corrigirão se for caso disso. (Também podem confirmar, n’é?) De qualquer modo, de acordo com o Portal da Língua Portuguesa, no Rio e em São Paulo ganho rima sempre com banho, à semelhança do que se passa com o resto das respetivas famílias.

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  • 2
    Pior: eu definitivamente digo "este amplificador tem pouco gãnho" como "tomei um bãnho", mas digo "ontem gánhei eu". E acho que digo "este gãnho eu".
    – ANeves
    Commented Jan 12, 2019 at 15:28
  • 1
    @ANeves, pior?! Eu vejo um padrão nesses teus exemplos: é ã quando é tónico, seja da famíla ganhar, seja na banhar; e é á qando é átono. Presumivelmente dizes gánhar e gánhava. Segundo o Portal da Língua Portuguesa, os cariocas também pronuncia com ã, mas em todas as palavras.
    – Jacinto
    Commented Jan 12, 2019 at 16:19
  • @ANeves, então, e dizes bánhei, bânhei ou bãnhei?
    – Jacinto
    Commented Jan 12, 2019 at 16:26
  • Digo "bãnhei", "bãnha-te", "bãnho". Disse pior, porque me pareceu que conjugo o verbo ganhar todo com /ga/, menos a primeira pessoa do presente do indicativo que por alguma razão vira /gɐ/. Mas agora já repeti isto tantas vezes na minha cabeça, que não sei nada.
    – ANeves
    Commented Jan 14, 2019 at 14:26
  • @ANeves, então e ganha, ganhe e ganham? Tou a tentar ver se é só primeira pessoa do singular ou se é sempre que é tónico.
    – Jacinto
    Commented Jan 14, 2019 at 17:14

1 Answer 1

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Ofereci aqui uma bounty, e ninguém pegou na pergunta, de maneira que segui a dica do Rui Fonseca acima, e bingo: nos séculos XIII e XIV era gaanho e gaanhar. Obviamente a sequência aa fundiu-se num único a (uma crase), e, explica o este artigo no Ciberdúvidas, o a que resulta da crase de dois aa tende em sotaques comuns em Portugal a manter timbre aberto, mesmo em posições em que esperaríamos timbre fechado. O mesmo acontece com o o resultante da crase de dois oo (mantém timbre aberto em vez de reduzir para [u] e com o e resultante de dois ee (mantém timbre aberto em vez de reduzir para [ɨ] ou desaparecer). Estas vogais duplas resultaram tipicamente do desaparecimento de certas consoantes que no latim havia entre elas, mais comumente o l e o n, mas também o d e o g.

O Ciberdúvidas apresenta o exemplo de gaanhar > ganhar e ainda os seguintes (as explicações são minhas, baseadas no que lá está):

Caveira vem de caaveira no português antigo, que vem do latim calavaria. O l intervocálico caiu, fenómeno comum na evolução do latim para o português, deixando dois aa com hiato entre eles, até que se fundiram num só. Aquele primeiro a de caveira tem timbre aberto, contrastando com o timbre fechado típico da posição pretónica, como o primeiro a de craveira, ladeira, alheira, braseira.

Aveiro < Aaveiro < Alaveiro. É uma cidade portuguesa, um caso parecidíssimo com o de caveira.

Corado < coorado no português antigo < colorado no latim. Mesmo fenómeno evolutivo de caveira. O o inicial de corado é aberto, enquanto naquela posição, pretónica, é normalmente reduzido a [u], como em adorado, rosado, colado.

Pregar (um sermão; não um prego) < preegar < praedicare. O e é aberto, enquanto naquela posição se reduz normalmente para [ɨ] ou é elidido completamente, como em pregar (um prego), regar, vedar, levar.

Esquecer < esqueecer < escaecer < *excaedescer. O e inicial aberto contrasta com a redução para [ɨ] ou elisão, como em perecer, receber, meter.

Depois fui ao dicionário Houaiss (Lisboa, 2002), que indica formas antigas das palavras, ver outras palavras com timbres aberto “anómalos”, e não falha (a formas intermédias entre o português moderno e o latim são as registadas no Houaiss, todas de entre os séculos XIII e XV):

Padeiro < paadeiro < pada (pequeno pão) +-eiro; Por sua vez, pada < latim panata.

Sadio < saadya < sanativus

Vadio < vaadios, uaadios < vagativus

Pegada (marca deixada pelo pé) < peegadas < pedicata. No português antigo temos também pees (pés) do latim pedis; agora percebo porque é o meu pai dizia péis em vez de pés (ele não era brasileiro). Ao contrário do e aberto de pegada (do pé), o e de pegada de pegar reduz-se a [ɨ].

Geração < geeraçõ, geeraçom < generatio,onis. O mesmo com gerador < geerador, jeerador < generator. Mas também temos no português antigo geerar e geeral, mas no moderno o e é reduzido: g[ɨ]rar e g[ɨ]ral.

E nem os sobrenomes escapam. Temos o primeiro a “anomalamente” aberto em Tavares e Taveira, e basta ir ao Google Books para encontrarmos Taavares e Taaveira. O filólogo José Leite Vasconcellos diz que há registo de Thalavares e presume que tenha havido Talaveira (Lições de Filologia Portuguesa, 1911, e outra página de uma edição de 1926).

Esta coisa de a crase abrir o timbre observa-se presentemente no sotaque de Portugal. A preposição a e o artigo definido a têm timbre fechado em Portugal, mas a crase deles, à, tem timbre aberto. O mesmo acontece com as crases (não assinaladas graficamente) resultantes do encadeamento de palavras na fala: por exemplo, os aa de bola e azul têm em Portugal timbre fechado quando as palavras são pronunciadas isoladas, mas bola azul é pronunciado como bolazul com o a com timbre abeto.

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