As três obras que consultei descrevem todas usos do clítico impessoal com verbos transitivos e não os apontam como desvio, ainda que possam indicar a existência opiniões em sentido distinto (e com a ressalva que só talvez a primeira se poderá considerar normativa).
João Andrade Peres e Telmo Móia em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (p. 234, mantida a ortografia):
O clítico se impessoal é uma expressão que indica a existência de um sujeito indeterminado numa frase. Observem-se os seguintes três exemplos:
(814) Naquela festa, cantou-se a noite inteira.
(815) Vive-se bem países de clima mediterrânico.
(816) Ouve-se ruídos durante a noite.
Este clítico impessoal acompanha sempre formas verbais singulares. [...] Distingue-se [...] do clítico apassivante, que pode ser combinado [...] com formas verbais singulares e plurais. Distingue-se ainda do clítico apassivante no que respeita ao tipo de verbos com que se pode combinar. Com efeito, pode surgir tanto em frases com verbos intransitivos — do tipo de (814) e (815), em que temos os verbos cantar e viver, respectivamente — como em frases com verbos transitivos — do tipo de (816), em que temos o verbo ouvir. Já o clítico se passivo só é compatível, como vimos, com verbos transitivos.
E a ressalva (negrito meu):
A propósito desta questão, importa notar que alguns puristas apenas admitem construções em que o clítico se impessoal se combina com verbos intransitivos, rejeitando, pois, frases em que o verbo é transitivo e tem um segundo argumento não preposicionado com que não concorda, como acontece nas seguintes frases:
(817) Ouve-se vários ruídos durante toda a noite.
(818) Recitou-se verbos de Pessoa.
(818) Vende-se casas.
Como a alternativa a estas estruturas, propõem construções passivas de clítico, em que o verbo surge na forma plural. [...]
Na nossa opinião, ambas as construções são aceitáveis, embora admitamos que se possa preferir uma ou outra por razões estilísticas. A nossa posição resulta da consideração de dois factores: por um lado, a aceitação generalizada por parte dos falantes que o uso clítico impessoal com verbos transitivos parece ter; por outro lado, o facto de não julgarmos haver razões — estruturais ou semânticas — para aceitar a construção com clítico impessoal nuns casos e rejeitá-la noutros.
E desvalorizam o facto de isto gerar frases estruturalmente ambíguas (p. 235):
No que respeita aos casos em que a forma verbal é transitiva e singular, pode verificar-se uma de duas situações: ou o segundo argumento do verbo é plural — caso em que não concorda com o verbo —, e estamos perante uma construção impessoal [...], ou o segundo argumento é singular, [...] — comprou-se um livro encadernado. Admitimos duas possibilidades de análise estrutural deste tipo de frases — como construções passivas (em que o argumento interno — neste caso, um livro encadernado — é sujeito) e como construções impessoais (em que temos um sujeito indeterminado e o argumento interno é complemento direto). Pode-se, pois, dizer que [tais] frases [...] são estrutalmente ambíguas. Trata-se, no entanto, de uma ambiguidade estritamente sintática, que não tem consequências ao nível semântico, já que a informação veiculada é a mesma nas duas construções. Na frase [atrás], por exemplo, temos a mesma relação — denotada pelo verbo comprar — entre um Agente em ambos os casos indeterminado e um mesmo Paciente — representado por um livro encadernado.
Quanto à Gramática do Português da Gulbenkian, esta vai na mesma linha. No capítulo 13 ("Orações Ativas, Passivas, Incoativas e Médias"), na página 446:
[As orações ativas de se impessoal podem] conter um verbo transitivo (cf. nesta praia, vende-se apartamentos, parafraseável por ‘nesta praia, {as pessoas/há pessoas que} vendem apartamentos’ ou ‘nesta praia, alguém vende apartamentos’) [...].
Há pequena nota de rodapé depois do exemplo “Descobriu-se os genes no séc. XX”:
Exemplos deste tipo, com um verbo transitivo no singular e sintagma nominal plural, são frequentemente estigmatizados na norma padrão.
No capítulo 11, há alguma especulação em relação ao motivo da rejeição por alguns da construção impessoal (p. 392):
A construção de se impessoal ilustrada em (69d) [“Comeu-se morangos à sobremesa”], com o verbo no singular e com um complemento direto plural, é por vezes estigmatizada, plausivelmente em virtude de estar em concorrência com a construção passiva pronominal comeram-se morangos à sobremesa, na qual o argumento interno se realiza como sujeito gramatical, concordando com o verbo. Outro par de exemplos do mesmo tipo, frequentemente citado na literatura gramatical, vende-se casas vs. vendem-se casas. Esse estigma deve-se talvez ao facto de os verbos verdadeiramente impessoais — que não selecionam um sujeito, como haver — serem raros e relativamente marcados em português [...]. Em (69d) e similares, os falantes porventura reagem mal à presença de um sintagma nominal que poderia funionar como sujeito mas não funciona — o argumento interno SN —, preferindo a construção alternativa em que esse argumento assume efetivamente a função de sujeito — ou seja, a construção passiva pronominal.
Por fim, Mira Mateus et al, em Gramática da Língua Portuguesa (6ª ed., p. 836, referências omitidas):
Em frases como as seguintes, o sujeito frásico, que denota uma entidade arbitrária, é assinalado pelo clítico se. Estamos pertante o que alguns autores designaram por clítico sujeito impessoal ou indeterminado e outros se-nominativo.
(40) (a) A grande questão está naquilo em que se acredita.
(b) Aluga-se casas.
(c) Trabalha-se demais.
O sujeito associado a este clítico é interpretado como indefinido e não-específico, sendo parafraseável por expressões nominais como alguém.